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Um dia

  • Leonardo de Cassio
  • 15 de abr. de 2016
  • 27 min de leitura

08h43

- Cuidado por onde anda – pragueja para um senhor que passa devagar ao seu lado, ao atravessar a rua, e consequentemente, pela pressa de todos que lutam para chegar cedo aos seus trabalhos, esbarra nela.

Arruma a bolsa cara sobre o ombro dolorido e acelera os passos, batendo nos ombros e pisando nos pés de quem passa ao seu lado.

Quando chega ao seu escritório, pigarreia, passando pelo corredor, alertando aos funcionários que havia chegado e que não queria risinhos enquanto estivesse presente.

- Bom dia, Giselle – diz o manobrista, apoiado no balcão, tomando café em um copo plástico – Vi que a senhora não veio de carro hoje – toma um gole e a encara.

- Sim – ela solta, sem parar de andar, e quando chega perto dele, para e o encara, com os olhos ameaçadores abertos – Mas por que estava prestando atenção em mim quando deveria estar trabalhando? – O rosto do manobrista se contrai com o sermão. Larga o copo no balcão e deixa o andar, descendo para a garagem. – E vocês? Abriremos daqui quinze minutos. O que estão esperando pra ligar o computador? – se dirige para as recepcionistas que se encaram quando Giselle se vira e segue para seu escritório.

Giselle formou-se, primeiramente, em Direito, mas a rotina de trabalho e defender pessoas que cometeram erros a estressava de forma que a fez seguir outro rumo. Acabou por fazer Ciências contábeis, e quando tinha vinte e oito anos, decidiu que abriria sua própria empresa.

Fugiu de casa aos vinte anos, quando a irmã se envolveu com um homem que, no fim das costas, acabou matando-a. A família se afundou na depressão, e não aguentando a pressão com que tinha que conviver, fugiu para outro estado. Seu coração se tornou pedra com o passar dos anos, mas algo lhe dizia que isso iria mudar.

Apertando o botão vermelho de seu telefone, Gisele, com sua voz arrogante e madura, diz:

- Traga os contratos da Myfield Realtis, agora.

- Ainda não está pronto, senhora – uma das secretárias diz, provavelmente recolhida pelo medo.

- Você tem cinco minutos para termina-lo, imprimi-lo e trazer aqui na minha sala – tira o dedo do botão vermelho e respira fundo, pressionando a lateral da sua cabeça, lutando contra o estresse.

11h58

- Estou saindo para almoçar e já volto – Gisele dispõe uma papelada na mesa de uma das secretárias. – Entregue isso para o senhor Almeida. Ele vem às 13h e não sei se estarei de volta.

- Tudo bem – sussurra a funcionária loira.

Caminha mais uma vez pelas ruas e evita pensar, como se, se o fizesse, acabaria doente. Para ela, pensar, ou nos ajuda, ou nos fere, então ela evitava fazê-lo.

12h07

Quando entra no seu apartamento, tira os calçados e deixa na soleira, respirando o ar puro de um apartamento de luxo. Alfred, um gato siamês branco, caminha com elegância até ela e esfrega-se em suas pernas, soltando um miado abafado.

Seu apartamento espaçoso ostentava janelas que iam do chão ao teto, enfeitadas com dramáticas cortinas de seda azul-claras, com vista ao sul para um lago que se estendia cristalino à sua frente. O piso era de madeira de lei escura, adornado por tapetes persas, e as paredes eram de um tom marrom acinzentado.

A mobília da sala de estar parecia ter sido comprada numa loja de luxo e ia desde um grande sofá de couro marrom com detalhes em tachas de metal, passando por duas poltronas do mesmo modelo, até uma terceira poltrona de veludo vermelho, virada para uma lareira.

Gisele andou até a poltrona vermelha e olhou para a otomana que compunha o conjunto com uma inveja considerável. Era o lugar perfeito para se sentar num dia chuvoso, tomando uma taça de vinho e ler um livro, ou ouvir uma música do Vivaldi.

A lareira era adaptada para gás e uma TV de plasma havia sido prendida sobre o consolo, como se fosse uma pintura. Várias obras de arte, pinturas à óleo e esculturas enfeitavam as paredes e a parte da mobília. Ela possuía peças de vidro romanas e de cerâmica gregas dignas de um museu, intercaladas por reproduções de esculturas famosas, incluindo a Vênus de Milo e Apolo e Dafne, de Bernini.

Mas não havia fotos pessoas. Havia fotos em preto e branco de Londres, Florença, Paris, Roma, Oxford e Veneza, mas nenhuma de sua família, amigos ou até dela mesma.

Gisele se levantou e buscou seu celular em sua bolsa de couro. Pediu comida por um aplicativo e andou até o cômodo seguinte, esperando que sua comida chegasse. Perto da mesa de jantar grande e frontal, havia um luxuoso aparador de ébano. As únicas coisas em cima dele eram um grande vaso de cristal e uma bandeja de prata ornamentada, com vários decantadores com líquidos cor de âmbar, um balde para pôr gelo e umas taças de cristal à moda antiga. Pegadores de gelo de prata completavam a cena, enviesados sobre uma pilha de pequenos guardanapos de linho branco bordados, como se estivesse esperando para dar um jantar. Mal sabia ela que nem do almoço que pediu, provaria.

Em suma, o apartamento da contadora Gisele Renault era esteticamente agradável, decorado com bom gosto, limpo, solitário, escuro, e muito, muito frio.

O interfone ecoou com um barulho fino, tocando. Gisele correu com delicadeza até a cozinha, e tirou o interfone do gancho, que ficava preso à parede.

- Sim? – ela disse, tentando ouvir a resposta do outro lado.

- Senhorita Gisele – começou um homem, sendo ele, obviamente, Adam, o porteiro – O nosso síndico pediu para que descesse aqui no hall de entrada.

- Aconteceu alguma coisa importante? – Sua pergunta soou como deboche, mas Adam não notou.

- Não posso dizer muita coisa, mas é algo referente ao seu gato... de novo – Gisele revira os olhos e morde o lábio inferior com tanta força que machuca.

- Estou descendo – avisa, e desliga o interfone.

12h18

Entra no elevador e aperta o botão com a inicial “T”, que a levaria ao térreo, no caso, a recepção do condomínio. Gisele nota o quão demorado é sua viagem do décimo terceiro andar até o último. Uma demora interminável, mas dessa vez está demorando mais. Demorando o dobro.

Quando chega, o elevador apita e as portas se abrem.

Uma luz branca a cega, e depois a engole.

12h20

Gisele está parada numa sala ampla, totalmente branca e clara. Ela cerra os olhos, tentando livra-los da claridade que a cega.

- Que droga...? – ela não sabe o que dizer. Gira o corpo lentamente, com a cabeça virada para a cima, analisando o lugar. Enquanto observa, encantada e assustada, escuta uma leve batida de pés ecoando no chão.

- Estou um pouco atrasada, mas estou aqui – uma voz feminina diz, alegre, atrás dela. Gisele se vira, tomada pelo susto, colocando a mão no peito, sentindo o coração acelerar.

- Eu só posso estar sonhando... – Gisele sussurra, recuando. Na sua frente, uma mulher gorda sorri para ela. A mulher leva consigo, nas costas, um fardo, como se fosse uma mochila.

- Não está – a mulher sorri para ela, se aproximando mais. Gisele nota que ela não é sólida, é mais como feita de uma fumaça, ou poeira branca. Como se fosse de outra dimensão, ou até mesmo, um fantasma. – Pode se beliscar, se achar necessário.

- Onde estou? – Gisele franze o cenho, olhando para os lados.

- No lugar nenhum – a mulher dá a simples resposta.

- E... De onde você saiu? Eu te vi no caixão... Isso... Isso não pode ser real.

- Você acredita em mim? – Pergunta o espírito da mulher.

- Eu nem sei onde estou. – reclama Gisele, se recolhendo um pouco quando bate as costas em uma parede aveludada.

- Eu estou bem na sua frente.

- Não posso te tocar. A mente nos engana sempre. – o ceticismo de Gisele era palpável. Tão palpável quanto o medo que sentia agora.

- Você acredita ou não em mim, mulher materialista? – O espírito se aproxima e Gisele sente o hálito fétido dela. A mulher, quando viva, fora sócia de Gisele.

- Acredito! Sou obrigada! – Gisele grita, desesperada, mas sem sair do lugar, apenas com os braços na frente do corpo, se protegendo.

- Pare de se torturar! Eu que sou infeliz! – O espírito pragueja.

- Por que está com esse fardo nas costas? – Gisele toma coragem para perguntar. Se estivesse num sonho ou ficando louca, as regras cabiam a ela criar, não?

- Porque é o fardo que eu carrego desde que tenho vida. – Lamenta-se o espírito – Eu mesma a fiz. É tão pesada e suja quanto a anos atrás. O seu fardo é tão pesado quanto esse.

As palavras do espírito eram verdades, e Gisele sabia disso. Era tão real que doeu fundo em seu peito, como se lhe batesse.

- Eu não quero mais te ouvir. Se não for para dizer algo que me reconforte, não diga nada. – tentou se proteger a mulher materialista.

- Eu não tenho nada a dizer. – O espírito balança a cabeça – Eu não posso ficar por muito tempo. Preste atenção: em vida, meu espírito nunca foi além da contabilidade, nunca saiu dos estreitos limites da nossa caixa registadora. Agora, longas viagens pela estrada da noite estão diante de mim. – A voz do espírito é velha e chega aos ouvidos de Gisele com extrema dificuldade, como se o ar, a qualquer momento, pudesse levar suas palavras embora.

- Dez anos morta e ainda está viajando? – Gisele pergunta, prendendo uma mecha do seu cabelo loiro atrás das orelhas.

- Toda hora. Sem descanso. Sem paz.

- Você deve ter viajado muito. – Gisele não sabia como era essa tal viajem, mas pelas palavras dramáticas do espírito, não pareciam ser boas.

- Eu estava cega. Cega! Eu não conseguia ver minha própria vida! Desperdiçada e mal usada. Ah, infeliz sou eu. – As lamúrias caem da boca do espírito como água de uma cachoeira.

- Mas você sempre foi uma boa mulher de negócios! – Gisele se lembra como era bom trabalhar com Martha – que agora era um espírito. Estaria ela enlouquecendo? Vendo gente morta?

- O bem estar comum era meus negócios. – O espírito aponta o dedo na direção da Gisele, depois vira a cabeça para o alto e solta um grito alto que faz Gisele tremer. - Mas ouça, meu tempo está acabando.

- Está bem. Mas não seja dura comigo, Martha. Por favor. – a voz de Gisele sai como um sussurro.

- Estou aqui para alertar que há uma hipótese e uma esperança de escapar desse destino. Uma hipótese que eu lhe consegui, Gisele. – Martha leva a mão até o peito. Apesar de não ser sólida, ela conseguia tocar em si mesma.

- Obrigado. Eu sempre soube que você era uma boa amiga – Gisele assente.

- Você será guiado por três espíritos. – Martha escolheu as palavras antes de falar.

- Essa é a hipótese de esperança que você me arrumou? Eu preferia não ter... – A voz de Gisele é medrosa, mas soa como ironia.

- O primeiro está te esperando no primeiro andar. – O espírito a interrompe.

- Eu não posso me encontrar com os três e acabar com isso de uma vez, Martha? – Gisele tenta encontrar uma saída rápida, mas o espírito parece estar disposto a ajuda-la.

- O segundo te esperará no segundo andar. E o terceiro no terceiro andar. – O espírito caminha até uma das paredes e bate nela com o nó dos dedos. Como mágica, a parede se desfaz como se fosse feita de areia, e abre visão para um oceano. – Agora, entre no elevador do outro lado da sala e vá para o primeiro andar. Boa sorte, Gisele, porque você não me verá mais. – Martha levanta os braços, arrumando o fardo nas suas costas e se joga para trás, caindo no oceano que se desfaz assim que o espírito cai sobre ele.

- Mas... – Gisele está sozinha novamente, se não por um elevador que a espera do outro lado da sala, com a porta aberta, iluminado por uma luz amarela. – Que seja – Ela dá de ombros e caminha até o elevador. Entra nele e o observa. Ele é como sempre foi, mas tem apenas três botões exibindo os numerais um, dois e três em cada botão, sucessivamente. Ela respira fundo e aperta o botão com número um.

Hora de relembrar o passado.

12h28

A porta do elevador se abre com um aviso e Gisele abre os olhos.

Ainda está no sonho.

Antes de sair do elevador, ela vê uma sala à sua frente. O piso é de madeira e uma poltrona de veludo vermelha está disposta perto de uma lareira a gás... Ela está na sala do apartamento dela. Será que o sonho acabou?

Ela pisa para fora do elevador, sentindo o chão sólido de sua casa sob os pés, mas uma mulher magricela sai de trás do sofá e olha para ela. Apesar do coração acelerado que bate ansioso no coração de Gisele, ela não sente mais tanto medo. Está se acostumando com a ideia do que está – ou não – acontecendo.

- É você que está me esperando? – Gisele questiona, deixando o elevador e sentindo-se em casa novamente.

- Sou. – A voz da mulher é doce. Diferente do espírito de Martha, essa, aparentemente, é sólida, e até poderia ser comparada a uma mulher real, se não pela suas pernas, ou pela falta delas. Dos joelhos para baixo, a mulher não possuía pernas, fazendo assim, com que ela flutuasse. Ela trajava um vestido florido e leva nas mãos uma lanterna, que aponta diretamente para o rosto de Gisele.

- Será que não dá pra apagar a lanterna? – Gisele pergunta, mais como uma ordem, tentando bloquear a luz com as mãos.

- Você é tão corajosa. Por que não vem você mesma apagar? – O espírito a desafia. Então ela conhecia Gisele...

- Eu não vou fazer isso. Eu só achei que... – Gisele engole um seco e o espírito abaixa a cabeça. – Quem é você?

- Eu sou o fantasma do Passado. – E tudo faz sentido. Ou não faz tanto assim?

- Passado quanto? – Gisele decide perguntar, porque... O que diabos estava acontecendo?

- Seu passado. – O espírito colocou ênfase no “seu” – Venha comigo. – O Passado estende a mão para Gisele, que, no início, recua, sem saber como reagir, mas logo depois, cedendo, pega a mão do Espírito e começa a caminhar, lentamente, com ele, pela sala.

- Para onde vai me levar? – Pergunta, curiosa.

- Só caminhe. – O espírito pede. Diferente de Martha, esse espírito era ao mesmo tempo doce e intolerante.

Elas param de frente para a lareira apagada. O espírito estende a lanterna que levava nas mãos em direção à parede da lareira e aperta o botão, acendendo-a. No início, a lanterna apenas iluminou a parede da lareira e Gisele quis rir, mas logo algo aconteceu, e a parede se abriu como se fosse um portal, que Gisele não sabia onde levaria.

- Venha – O espírito tenta puxar Gisele, que congela sobre o piso, imóvel. – Não precisa ter medo – e a voz melodiosa, após alguns segundos, acaba convencendo-a. Gisele se agacha e atravessa a porta da lareira, sendo sugada pelo buraco negro, sentindo a sensação de cair.

Logo, as duas estão paradas, em pé, de frente para um pequeno bairro. Está noite e frio, mas Gisele não sente o frio, apenas sabe que está. Todas as luzes da cidade estão acesas e parece ser alguma noite de comemoração.

- Eu não acredito... Eu... Eu cresci aqui. – O rosto de Gisele se enche de emoção quando ela vê as pequenas casas delicadas se estenderem sobre ruas de paralelepípedo. Sua boca se abre de forma nostálgica.

- Por que está tão chocada? – O espírito pergunta, se aproximando do rosto dela e observando sua emoção.

- Não estou chocada. – Gisele responde, virando o rosto.

- E o que é isso no seu rosto? – O espírito rebate, notando lágrimas enchendo o olho da mulher loira.

- Nada. Caiu algo nos meus olhos. – Gisele passa os dedos das mãos nos olhos e seca as poucas lágrimas que embaçavam sua visão.

- Observe. – A mulher com a lanterna diz, segurando em sua mão e apertando um botão que acendeu a lanterna com a luz forte. O espírito aponta a lanterna para o chão onde estavam pisando e então, subitamente, sem tempo para se segurar em algum lugar, Gisele e ela caem, em pé, num chão de madeira.

Elas estão em um lugar quente dessa vez, e Gisele não sente que está quente, mas sabe por causa dos fornos à lenha que estão acesos no lugar. Estão na cozinha de uma loja. Uma mulher de trinta anos faz bolinhas com uma massa marrom escura e coloca de forma bem distribuída em uma forma de metal. Uma criança calça luvas de pano nas duas mãos pequenas e corre alegre, para um forno convencional. Abre sua porta que range e tira de lá uma forma com biscoitos em formatos de nuvem.

- Ficaram lindos, mamãe! – A criança sorri.

- E cheirosos também! – a mãe se aproxima e beija a testa da menina.

Gisele se lembrava disso como se fosse hoje. Ela ajudava a mãe a fazer bolos, tortas e biscoitos, e vender diariamente.

A versão criança de Gisele tira as luvas e as joga sobre o balcão, e então corre quando escuta um barulho na loja que ficava na parte da frente do galpão. Quando a criança passa ao lado de Gisele, ela recua, assustada e visivelmente emocionada.

- Não se preocupe. Não passam de sombras de coisas que existiram. Elas não percebem nossa presença. – O espírito comenta com Gisele.

Gisele observa a mãe cozinhar com carinho quando lágrimas insistem por explodir de seus olhos, mas elas se mantêm firme a as segura dentro de si.

- Venha. – O Passado interrompe seus pensamentos, segurando-a pelo pulso e, mais uma vez, ligando a lanterna, dessa vez, apontando para o forno a lenha acesa. O fogo que crepitava foi automaticamente substituído pela imagem de um prédio antigo, mas bem preservado.

- Esta era minha escola – Gisele sussurra quando se vê parada em frente aos portões de ferro alto de uma escola.

- E ela não está vazia. – O Passado insiste em encarar Gisele bem nos olhos – Está cheia de crianças isoladas que andam tristes pelos corredores, rejeitada pelos amigos...

O Espírito do Passado caminha em direção ao portão, que se abre sozinho. Mais uma vez, o Espírito saca sua lanterna e aponta sua luz cega em direção à porta de entrada da escola. Eles entram no portal e caem firmes numa sala de aula vazia, se não por uma garota que chora e canta tristemente, enquanto observa a chuva cair contra as janelas do lado de fora.

Em poucos segundos a imagem muda. A garota continua sentada, mas ela não é mais uma criança. É uma adolescente com corpo já formado e face dramática. Seus pensamentos são interrompidos por uma criança mais nova, de dez anos, que entra eufórica e gritando na sala.

- Gisele, Gisele! – a criança sorri, alegre.

- Olá, pequena – as duas trocam um abraço amoroso.

- Papai mudou tanto, Gisele! Ontem à noite ele falou comigo tão carinhosamente!

- Sério? Fico feliz por isso.

O Espírito observa a cena ao lado de Gisele que tenta não chorar e não demostrar qualquer sinal de emoção.

- Ela tinha um coração tão grande – Comenta Gisele, sussurrando.

- Ela morreu adulta – O espírito completa.

- Não fale sobre ela. – Ruge a loira, protestando.

- Você não tem culpa. – A voz do espírito permanece impassível.

- Eu deveria ter ajudado. – Gisele abaixa a cabeça.

- Você não podia escolher com quem ela saía. Foi escolha dela continuar com aquele homem. – As palavras do espírito ficavam entre ajudar ou confundir ainda mais a cabeça da mulher.

- E ele a matou. – Uma bile se forma na garganta de Gisele.

- Não vamos falar sobre isso, tudo bem? – O espírito pigarreia, levantando sua lanterna para o teto. O teto cheio de bolor foi substituído por uma imagem colorida e viva, que elaborava um som alegre. O espírito pegou na mão de Gisele e pulou para o alto. O teto as engoliu e elas estavam, agora, paradas num salão de festa.

O salão estava lotado. Pessoas pulavam e gritavam com euforia. Tomavam ponche e bebiam cerveja enquanto gargalhavam alto. No centro do salão, antigos amigos do colégio de Gisele dançavam numa coreografia animada.

- Eu me lembro dessa noite. – Gisele sussurra, observando, maravilhada.

- Noite de ano novo. Quando você se formou no colégio. – O espírito também sabia.

Gisele observa quando um rapaz de cabelos compridos até os ombros se aproxima dela com o olhar apaixonado e segura as mãos de sua versão mais nova. A Gisele mais nova aceita a proposta do rapaz e caminha com ele até o centro do salão, entregando-se a uma noite de amor e música.

Sem avisar, o Passado aponta a luz da lanterna para o chão e, mais uma vez, eles estão no topo de um morro, fora do bairro. Uma mulher, sendo ela Gisele aos vinte anos, montou em um cavalo negro, levando consigo apenas algum dinheiro e uma trouxa de roupas.

- Você se lembra disso? – O espírito pergunta, cruzando os braços sobre o peito.

- Foi quando fugi. – Gisele engole um nó que se forma em sua garganta e observa a sua versão mais nova fugir para a cidade.

- E se lembra de por que fugiu? – É claro que ela lembrava.

- Eu não soube lidar com a depressão dos meus pais. – E assumir isso em voz alta era ainda mais doloroso para ela.

- Você nunca soube lidar com problemas, Gisele. Sempre fugiu deles. Você teme demais o mundo. – O Espírito a repreendeu.

- Quando vi que tudo foi tirado de mim, passei a trancar meus sentimentos para mim. Agora, não acredito no amor. Não sinto mais nada pelas pessoas. Senti que fiquei fria, como se o amor não existisse. Para mim, amor e realidade são contraditórios. – Pela primeira vez, Gisele se sente segura com alguém, em anos. Ela vira o rosto e encara a pele pálida do Passado.

- Algumas pessoas têm dificuldades de expor seus sentimentos.

Uma rajada de vento passa por elas, mas o frio é inexistente agora.

- Me tire daqui, por favor. – Pede Gisele.

- Eu já te disse que tudo isso são sombras de coisas que já existiram. Elas são o que são. Não me culpe. – Pede, de volta, o Passado.

- Por favor, me deixa voltar. Eu não suporto isso! – Gisele fecha os olhos, demonstrando sentir dor, pela primeira vez, em anos.

Pegando pela última vez sua lanterna, o espírito mira a luz para si mesmas, e quando se dão conta, estão na sala da casa de Gisele, paradas em frente ao elevador que as espera de portas abertas.

- Entre, Gisele. – O espírito pede.

- Você não vem comigo? – Gisele franze o cenho, entrando no elevador.

- Não se apegue ao passado, meu bem – O espírito solta um riso e se afasta. Gisele entende o recado e contrai o canto dos lábios, pressionando o botão número dois do elevador. As portas se fecham.

Caro passado, obrigado pelas lições.

Caro presente, estou aqui.

12h43

- Entre e me conheça! – a porta do elevador se abre e Gisele escuta a masculina cansada, mas animada.

Ela não está em nenhum cômodo da sua casa dessa vez. Está em uma sala xadrez, quadriculada com quadradinhos pretos e brancos, como um tabuleiro de xadrez. Na verdade, a sala era um tabuleiro de xadrez. Quando saiu do elevador, Gisele passou por entre as peças do jogo: cavalos, peões, bispos, torres, rei e rainha. Eram peças do seu tamanho, tão grandes que, se caíssem sobre um carro, o estrago seria enorme. Do outro lado, ela via as outras peças, de cores pretas também distribuídas para o começo de uma partida. Ela caminhou até o centro do tabuleiro e só então viu, sentado ao lado da peça do rei, em um quadradinho preto, um homem.

- Eu sou o Espírito do presente. – O homem tratou logo de se apresentar. Ele usava uma manta dourada e vermelha. Tinha a careca lisa e uma barriga enorme, escondida sob o pano que mais parecia um roupão.

- Eu não quero participar disso. – Gisele balançou a cabeça quando o homem se levantou. De todos, até agora, ele era o que menos se parecia com um espírito, na verdade, nada nele parecia ter parte com o sobrenatural, se não por sua altura, que beirava os três metros. Gisele recuou e tentou entrar no elevador, mas as portas se fecharam antes que ela pudesse entrar.

Contrariada, Gisele volta para o centro do tabuleiro e fica ao lado de uma peça do jogo, olhando para o alto, sentindo-se minúscula ao lado do homem.

- Nunca me viu? Não se passa pela minha cabeça que me conhece? – o homem ri a todo o momento, massageando a bochecha corada.

- Acho que não. – Gisele contrai o canto dos lábios.

- De fato. – Gisele observa um pouco mais do homem. O que notou dessa vez é que ele levava um arco nas costas, mas não enxergava em nenhum lugar ali, nem um sinal de uma flecha.

- Vejo que tem um arco, mas nenhuma flecha. – tratou logo de comentar.

- Oh, sim. Paz na terra igual espíritos livres. – o homem gargalha como se houvesse graça no que ele falou.

- Acabe logo com isso e me leve para onde quiser. – Gisele balança as mãos. Quanto antes isso acabasse, antes ela voltaria para casa e tudo voltaria ao normal; Porque, se fosse um sonho, estaria real demais.

- Vamos lá! – o homem sorri, mostrando seus dentes amarelados.

Com seu dedo enorme, o homem bate o dedo indicador em cada quadrado no chão, um de cada vez. Um preto, um branco, um preto um branco, um preto... E assim sucessivamente. Os quadradinhos que ele tocou se liquidificaram e escorreram, quando substituídos por uma imagem da cidade onde Gisele morava agora. Parecia que ela observava um TV.

- Isso é impressionante. – ela se segura para não deixar o queixo cair.

- De fato. Poucos conseguem ver o mundo dessa forma – o homem gargalha mais uma vez. Sua barriga lisa se movendo para cima e para baixo enquanto ri de forma desesperada. Gisele se perguntou como ele ainda não havia se engasgado com a própria saliva, e em silêncio, desejou que isso acontecesse.

A imagem que o chão mostrou foi a seguinte: primeiro a cidade por cima. Fazia frio, mas ainda era tarde. As pessoas conversavam por seus smartphones e corriam apressadas entre corpos aflitos e atrasados. Mas, depois, a imagem se aproximou e seguiu para uma casa. A imagem que vi do interior da casa fez o coração de Gisele ruir.

Uma de suas recepcionistas aproveitava sua hora de almoço. Não de fato aproveitava, porque ao invés de descansar em sua uma hora, ela estava sentada numa cadeira de plástico ao lado de uma cama, dando sopa para uma mulher de uns quarenta anos.

- Agradeça à sua chefe, querida. – Sussurrou a mulher acamada, depois de engolir a sopa que lhe foi dada.

- Por que eu agradeceria a uma mulher tão fria e vil como Gisele, mãe? – respondeu a recepcionista loira, que fez o peito de Gisele se misturar em várias emoções. Ela arqueou as sobrancelhas.

- Você nunca teve ódio dela. O que mudou? – a mãe perguntou à menina.

- Eu tentava enxergar o futuro nela, mãe, mas não consigo mais. Ela é dura e vazia. Percebi isso hoje. – a menina pega mais da comida pastosa na colher e assopra levemente.

- Você sabe que atrás daquela máscara de frieza dela, há um coração. – a mulher tem a voz falha e cansada.

- Eu não sei mais no que acreditar... – a menina leva a colher até a boca da mulher e respira fundo.

- Acredite no que seu coração sussurra. – a mãe diz à recepcionista. O Presente encara Gisele do alto, sem dizer nada.

- Eu ainda espero que ela seja feliz – a recepcionista contrai o canto dos lábios, numa menção de sorriso.

- E será, minha querida. E será.

A imagem continua a ser transmitida, mas sem som.

- Diga que essa senhora será poupada. – Gisele vira o pescoço e encara o Espírito do Presente. – Ela é tão jovem.

- Se essas sombras permanecerem inalteradas no futuro... – O Espírito parece se deliciar com o tempo que deixa Gisele esperando uma resposta – A mulher morrerá. – Diz, por fim.

- Morrer, não, Espírito. Não permita isso, se estiver ao seu alcance. – A compaixão queimou o coração de Gisele dessa vez.

- Mas se ela tem que morrer, que morra logo. Será mais fácil assim. – O rosto do espírito se tornou uma carranca nervosa.

- Como...? – Gisele se sentou no chão, com medo do espírito que agia impiedosamente. Como... como ela.

- Você diz que a quantidade de pessoas no mundo deveria diminuir... – E Gisele realmente dizia isso, às vezes, por isso, agora, não sabia o que responder ao velho.

A imagem no chão mudou. Mostrava agora, o estacionamento do seu escritório. João, o manobrista, fazia mímicas enquanto algumas crianças, moradoras de rua, sentavam no chão e olhavam para ele.

- É frio. – João disse, mas sem fazer nada com o corpo.

- Neve! – Gritou um dos meninos, tentando adivinhar o nome da coisa que João estava dizendo.

- Não, não. – João balançou a cabeça, sorrindo – É sem graça...

- Frio e sem graça? – Outro menino pergunta, arqueando as sobrancelhas levemente sujas.

- Isso mesmo. – concorda o manobrista.

- Um balde de gelo? – Aponta um terceiro menino.

- Não! – João gargalha.

- Eu sei! É sua chefe, Gisele! – Diz o menino que havia dito “neve” da outra vez.

- Acertou! – comemorou João, entregando uma moeda de um real para cada um dos três meninos, que olharam maravilhados para a peça.

- Ela é tão chata! – diz um dos meninos – Mas você é legal, João. Obrigado pelas moedas. – O sorriso no rosto dos meninos é sincero.

- Eu tenho pena dela, galera. Ela faz escolhas e sofre com elas. Escolhe não gostar de nós, nos tratarmos mal, e qual as consequências?

- Ela não tem nem com quem conversar. – um dos meninos dá os ombros.

- Exato! – concorda João. – Mas de qualquer forma, eu a admiro.

A imagem se apaga quando os meninos se levantam correndo do estacionamento e ganham as ruas da cidade. Agora, o chão quadriculado voltou ao normal.

- Nossa viagem acabou, Gisele. – Anuncia o Espírito do Presente.

- Mas já? – Gisele queria mais. Ela queria saber o que o resto achava dela, mesmo que, se procurasse saber demais, ficaria machucada.

- Você tem mais uma experiência essa tarde. – O Espírito coça a careca.

- E o que vou levar daqui? – Gisele se arruma e olha para cima.

- Você trouxe alguma coisa do Passado? – O fantasma pergunta, sentando-se no chão, de novo, ao lado da peça do jogo.

- Boas lembranças. – Gisele levanta os ombros e os deixa cair – Bem, pelo menos algumas.

- Ótimo. Então acho que posso te dar isso. – O Presente tira duas pequenas chaves do bolso do seu casaco. São chaves do tamanho convencional. Uma é azul e outra vermelha, e ambas parecem pesadas - Essas chaves que você usará em breve. Uma é o materialismo. A outra é a alma.

- Como vou saber qual pertence a qual?

- Você vai saber quando chegar a hora. Mas agora vá. Entre no elevador e suba para o terceiro andar. – A porta do elevador, como se soubesse, se abre.

- E se eu não souber usar as chaves? – as peças Cavalo do tabuleiro criam vida, Gisele a vê e questiona a própria sanidade. Os cavalos relincham e se aproximam dela, mas ela recua e corre, quando vê, já está novamente no elevador. Desesperada, ela guarda as chaves no bolso e pressiona o terceiro botão no elevador.

- Adeus, Gisele. – O espírito se despede.

Algo mudou dentro de Gisele naquele momento, enquanto o elevador se elevava para o terceiro andar.

Ela começou a amar a vida no presente do indicativo.

13h00

Quando a porta do elevador se abriu no terceiro andar, Gisele sabia que ainda estava no prédio onde mora, embora não saiba que lugar era, ela tem a nítida certeza de que nunca saiu dele.

O terceiro andar é diferente e vazio. Literalmente. É um cômodo vazio, a princípio. Gisele deixa o elevador e caminha a esmo pelo escuro, sem saber onde pisava e o que tinha a sua frente, mas, lutando contra seu medo, ela continuou andando, com as mãos a frente do corpo, apalpando o escuro, mas, logo depois, uma luz surgiu no topo de sua cabeça, e ela pode ver onde estava.

Ela estava no escritório, parada, observando o seu outro eu sentada na cadeira, os cotovelos apoiados na mesa, somando dinheiro. A porta abre:

- Boa tarde, senhora Reynaud. – Entra um homem maduro de pele escura.

- Por que estaria boa? – Gisele rebate, sem olhar para ele.

- Porque ontem foi natal e daqui uns dias será ano novo! – O homem está alegre.

- Não entendo qual o sentido de comemorar o ano novo. Você fica mais velho e cada vez mais pobre. É uma data sem sentido e chata. – Pragueja Gisele revirando os olhos. A pele dela é velha e os cabelos brancos, ali, no futuro. Gisele não sabe quão o ano daquele futuro, mas sabe que é o futuro.

- Vamos, senhorita! Ontem não apareceu na ceia que te convidei, mas vamos à de ano novo, por favor. – O homem senta-se numa cadeira de frente para Gisele – Eu insisto.

- Não posso. Estou ocupada. – Gisele permanece olhando para as moedas espalhadas por toda a mesa.

- Vamos, sei que arranja um tempo. – insiste.

- Não.

- Estará toda a família reunida. É uma época de renovação. Eu insisto que...

- Eu já disse que não! – Gisele grita, interrompendo-o, dessa vez, olhando severamente para ele – É só uma época onde as pessoas gastam mais do que podem. Se eu pudesse desejar algo, eu desejaria que todos que comemoram o ano novo morram queimados por um raio.

- Gisele! – O homem franze o cenho e a repreende.

- Eduardo! – Gisele grita em resposta. Os dois se encaram por alguns segundos, em silêncio, abraçados pelo constrangimento – Celebre seu ano novo do seu jeito e me deixe celebrar do meu.

- Mas a senhora nem celebra. – Eduardo se levanta e passa os dedos pela mesa de linóleo.

- Então deixe que eu o ignore. – Os olhos de Gisele se voltam para a calculadora.

- Não vai mesmo cear conosco? – O homem abaixa os olhos.

- Prefiro ir para o inferno.

- Pra quê tanta amargura, Gisele? – Eduardo pergunta depois de um tempo observando a mulher atrás da mesa, surpreso com a resposta.

- Não vejo motivos para sorrir. Somos pedaços de carne que vai morrer. – e então a imagem se apaga, e o escuro toma conta do lugar novamente, e só após alguns segundos no silêncio da escuridão, é que um fio de luz aparece, vindo da tela de um computador, que ilumina Gisele, ainda mais velha, com seu gato no colo.

- Você observa seu dinheiro subir na conta e pressiona botões numa calculadora. É tudo que faz. – O coração de Gisele se acelera quando ela vê uma sombra escura ao lado dela, dizendo aquilo com uma voz grossa e gutural, que parece ecoar por todo o apartamento. Estavam no apartamento de Gisele, observando Gisele Velha viver solitária.

- Acho que é tudo que vai importar. – Gisele vira o rosto, não querendo ver a cena.

- E o que vai levar para o caixão? – O Espírito negro toca o rosto da Gisele com os dedos frios e força-a olhar a imagem – Apenas um corpo velho e vazio? Sem memórias e boas lembranças? Quer que sua alma vague por cantos escuros da Estrada da Noite?

E aquelas palavras faz o peito de Gisele ruim quando ela enxerga que aquele futuro era a pior das imagens que ela havia visto. Ela vira o rosto e encara o Espírito, e só então percebe que o ele não tinha rosto. Ele usa uma manta negra e leva nas mãos... uma foice. Aquele espírito era a morte.

O peito de Gisele se inflou com o medo, fazendo seu coração se explodir em milhões de fragmentos.

- Não. Eu não quero. – Gisele sussurra, com a voz abafada, como se alguém pressionasse seu pescoço, incapacitando-a de falar.

- Fico feliz em ouvir isso. – A Morte sussurra quando uma luz se abaixa, e um restaurante toma forma a volta deles.

Eles estavam parados de frente para a mesa, em uma espécie de bar, alguns homens estavam sentados em volta da mesa, conversando e bebendo. Logo ela reconheceu os homens, eram alguns de seus clientes.

- Eu achei que ela nunca ia morrer! – diz um, o mais velho, acariciando a sua barba. Gisele, que observa a cena, demonstra em cada músculo da sua face, o desespero.

- O que ela fez com o dinheiro dela? – Pergunta um, mais novo.

- Tudo que sei é que ela não deixou um centavo para mim. – Responde o terceiro, e eles caem na gargalhada.

- Deve ter deixado tudo para aquele gato peludo dela. – O mais novo diz, bebericando de sua cerveja.

- Ela era egoísta! Nem isso deve ter feito. – O primeiro fecha a cara e traga um gole de sua bebida.

- Quem fará seu funeral? – O terceiro levanta a questão.

- Todos estão dizendo que ela deveria ser jogada num buraco qualquer! – E mais uma vez, os três riem, como se aquilo fosse engraçado. Gisele não achava graça.

- Que maldade! – disse um, mas o semblante em seu olhar era de que estava achando aquela situação engraçada.

- Que mulher desagradável. – diz outro, mas a imagem se torna escura aos poucos e inaudível, e depois, tudo fica escura novamente. Gisele está sozinha com o Espírito do Futuro.

- Ninguém aparece no seu funeral. – a Morte diz, sem ensaios.

- Tudo bem. Eu entendi. – Gisele abaixa a cabeça e olha para o chão negro – O meu fim está para ser triste e solitário.

A escuridão é tomada por uma luz submersa em tristeza. Os dois estão, agora, num cemitério, entre lápidas frias que se encaixam de forma bagunçada no espaço.

- Aquele é seu caixão. – a Morte aponta o dedo para uma caixa de madeira.

- Mas é só uma caixa de madeira. – Gisele se espanta e olha para a caixa com total descrença.

- Eles vão achar, ainda, que é muito bom para alguém como você. – O Espírito não se importa de ser cruel. A verdade doía e calava fundo.

- Eu prometo que quando eu sair vou levar essa lição comigo. Se eu pudesse mudar tudo... – Gisele cai no chão e seus olhos se enchem de lágrima – Mas não posso!

- Não. – A Morte sussurra.

- Ninguém sentiu piedade de mim? – Questiona Gisele, erguendo a cabeça e lutando contra o arrependimento que crescia em seu peito.

- Nenhuma alma. – responde, de forma cruel, o Futuro.

- Eu não posso ser tão ruim assim! – Gisele, inconformada.

- Você é. Acredite. Sua ignorância te cega. – repreende a Morte.

- Essas sombras são coisas que vão acontecer no futuro ou que poderão acontecer no futuro? – Gisele coloca ênfase em “poderão” porque quer uma resposta concreta. Quer saber se pode mudar essa sua história tão ruim. – O caminho dos homens em vida prenuncia certos finais, mas se os caminhos mudarem, os finais altera também, não? – Ela termina.

- Morte. – A voz da Morte se ergue num tom pesaroso.

- Diga que posso mudar essas sombras. Diga que posso mudá-los para uma vida diferente! – As lágrimas mancham a maquiagem de Gisele.

- Por que está tão preocupada com seu final agora, Gisele? – A morte quase a esnoba, e sem poder ver seu rosto, Gisele se sente ainda pior.

- Porque... Pior que envelhecer é não se tornar alguém melhor! – E aquela frase, naquele instante, abre caminhos e espaços para a chance de uma vida melhor.

- Cadê as chaves que o Presente lhe entregou? – pergunta a Morte, esperando uma resposta rápida.

- Estão aqui! – Gisele tira as chaves do bolso e as mostra, então, pela última vez, o escuro se modifica, transformando-se numa pequena imagem.

Duas portas aparecem na frente de Gisele, ambas brancas e com dois números na porta. Um e dois, respectivamente. Elas se destacam na escuridão.

- Escolha uma das chaves e abra uma das portas. – O Espírito sem rosto dá a ordem.

- O que vai acontecer comigo? – o desespero de Gisele demonstra-se pela forma como suas mãos tremem.

- Uma das portas é o coração e a outra o corpo. Uma chave é a alma e a outra o materialismo. Se combinar a chave da alma com a porta do coração, voltará para a terra e poderá mudar seu futuro. Se combinar a chave materialista com a porta do corpo, seu futuro permanecerá como você viu. A morte solitária te esperará. – e era assim, sem uma segunda chance.

Não.

Essa era a segunda chance.

- E se eu combinar a chave com a porta errada? A Coração com Materialista, por exemplo?

- Você caíra no esquecimento.

- Como assim? – Gisele morde a própria língua com força e sente o gosto do sangue na sua boca.

- Não há tempo, Gisele. Escolha uma das portas e chave. – A Morte ordena.

- Como vou saber?

- Escute o sussurrar do seu coração...

A Morte desaparece, sem dizer adeus, deixando Gisele sozinha com as portas na sua frente. Ela observa as chaves em suas mãos e pressiona seu peito, fechando os olhos, ouvindo o sussurrar do seu coração. Ela escolheu a chave azul e se dirigiu para a segunda porta. Colocou a chave na fechadura e girou-a, esperando o clique. A porta se abriu, com uma luz branca de tirar o fôlego.

Ela entrou.

15h45

Estou morta?

Gisele precisa fazer esta pergunta para si mesma.

Será que estou morta?

Parece óbvio que sim, está morta. A sua sanidade a entregou a loucura e a fez morrer em sua própria mente, onde o flash da sua vida passou pelos seus olhos, até que ela fosse transportada para algum lugar, sabe-se lá onde.

Mas Gisele está deitada em sua cama, em seu apartamento. Ela sente nas mãos os lençóis de linho e seda, consegue ver o seu gato felpudo se aproximar e pular na sua cama, lambendo seu rosto com a língua áspera.

Gisele se levanta esperançosa. Talvez não tivesse morrido, afinal. Ela olhou o relógio e viu que esteve muito tempo fora, talvez, metade desse tempo, dormindo, mas valera a pena, hoje ela tinha uma nova chance.

Ela pegou sua bolsa e se dirigiu para seu escritório. Quando a porta do elevador se abre e ela entra na recepção, fecha a cara e caminha brava em direção ao balcão, onde as duas recepcionistas trabalhavam.

- Eu não acredito que estou vendo isso – ela começa. As funcionárias se arrumam na cadeira e contraem o rosto. – Por que estão trabalhando sem nenhuma folga na semana? – as duas não entendem a conversa e se sentem confusas – Vamos, garotas, tomem o dia de folga, e só apareçam aqui amanhã às nove!

- Senhora? – pergunta uma.

- Ahn? – Gisele se vira, sorrindo.

- Está tudo bem? – ela pergunta.

- Eu estou ótima! Agora saiam daqui e corram para suas casas! Manda João ir embora também, tenho outros funcionários que podem vir aqui e substituir vocês.

Sem dizer mais nada, Gisele entra para seu escritório e observa através da persiana branca as duas funcionárias deixarem o lugar, comentando o episódio. Claro que levaria um tempo até eles se acostumarem com a brusca mudança de humor, mas elas se acostumariam.

Gisele estava disposta a se tornar alguém melhor. Essa mudança beneficiaria todos, não somente o espírito de Gisele que se tornaria livre e não precisaria vagar pela Estrada da Noite para sempre depois que morresse.

Se você agir com dignidade, pode não melhorar o mundo, mas uma coisa é certa: haverá na Terra, um Espírito perturbado a menos.

Gisele acreditava fielmente nisso.


 
 
 

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