Dentro de Casa
- Jayne Nascimento
- 21 de abr. de 2016
- 17 min de leitura
Avenida Paulista/São Paulo – Hoje, 11h12
Ele acabou de deixar o último produto quando recebe a ligação do chefe, o liberando do trabalho mais cedo. Ele agradece, com pensamento de que chegaria em casa e poderia aproveitar o dia com os filhos. Às vezes, trabalhava como segurança em casamentos, mas hoje, quarta-feira, ninguém iria casar, pelo que parecia.
A esposa havia morrido três anos atrás, mas Júlio não queria falar sobre isso. Ele nunca queria. A esposa o deixou com os dois filhos. Victor e Camila, tendo eles cinco e sete anos, respectivamente. As crianças ainda achavam que a mamãe fazia uma viajem aos céus, e, de fato, fazia mesmo.
Júlio era negro, alto e forte. Mas apesar de seu porte, o medo que causava nas pessoas se tornava superficial, porque, como o significado de seu próprio nome já dizia, ele era fofo, sensível e macio.
Ao meio-dia Júlio deixou o carro da empresa estacionado na garagem e tomou um ônibus para casa. Encostado com a cabeça no vidro imaginando coisas que nenhum adulto pensava, passou do ponto, então teve que voltar duas quadras, andando, mas isso não o desmotivou.
Sua casa não era luxuosa ou rica, mas era grande e confortável o suficiente para os três. Júlio subiu o lance de escadas e deixou os sapatos gastos no tapete da varanda. Abriu a porta e assim que colocou os pés dentro de casa, chamou o nome dos filhos. A casa estava envolvida por um ar carregado de peso, e Júlio sentiu isso até em seus ossos.
- Queridos? – Júlio chama novamente, acendendo as luzes, tirando a casa da escuridão assombrosa. Geralmente ele encontraria os dois sentados no sofá assistindo algum desenho na televisão, mas hoje fora diferente. Esse era o horário que Júlio chegaria para leva-los para a escola, mas nenhum sinal da mochila deles, também. Júlio caminha ao quarto das crianças. – Victor? Camila, querida? – Quando abre a porta do quarto, a cama está organizada, mas nenhum sinal de que as crianças estiveram ali a pouco.
Júlio anda até a cozinha e abre a porta da geladeira, mas o sanduíche de manteiga de amendoim que ele preparava para as crianças levarem para a escola ainda estava lá, então eles não foram para a escola sozinhos. Fecha a porta da geladeira e apressa os passos até seu quarto.
- Camila? – chama mais uma vez, abrindo a porta do seu quarto, mas se deparando também, com a simples imagem da sua cama organizada. – Victor? – ele eleva o tom de voz, gritando, caminhando para o próximo cômodo, mas não encontrou nada lá também. O seu coração, agora, já gritava num desespero inimaginável.
Júlio deixa a casa e para sobre o primeiro lance de escadas, olhando para os dois lados da infinita rua calma.
- Crianças, é hora de entrar! – ele avisa, como se estivesse gritando para o nada.
Ele engoliu um nó que se formava na sua garganta e mordeu os lábios, contendo o nervosismo. Duas meninas passaram ali, andando com patinetes, na calçada. Júlio desceu até o gramado.
- Susie, vocês viram a Camila? Ou o Victor? – pergunta ele, de cenhos franzidos. Ele conhecia bem as crianças, porque sempre que podia, ele brincava com elas.
- Não, senhor Fontes - uma respondeu.
- Desculpa – pediu Susie.
- Tudo bem – Murmurou Juliano – Obrigado.
Júlio atravessou a rua e começou a andar pela calçada, gritando o nome das crianças enquanto olhava para os lados em busca delas. Já era meio-dia e meia quando ouviu risadas e algumas palavras com vozes infantis.
- Victor? – chamou, já com a menção de um sorriso aliviado no rosto, mas quando se virou, viu que se tratava de crianças, mas não era nenhum de seus filhos.
Duas horas da tarde quando Júlio voltou para sua casa. Caminhava de um lado para o outro, na sala, aflito, e tinha quase certeza que o chão sob seus pés derreteria por conta de seu coração que fervia em desespero.
Ele pegou o celular no bolso da calça jeans e discou o número da polícia.
- Serviço de polícia, boa tarde – é recepcionado pela voz de uma mulher.
- Boa tarde – já disse ele com a voz presa na garganta – Sou Júlio Fontes, moro na rua 238, ao norte e estou ligando para informas duas crianças... – nunca imaginou que diria isso na sua vida, por isso as palavras morreram, mas logo engoliu o nó que o sufocava e continuou – desaparecida.
- O que o senhor é das crianças?
- São meus filhos – seus olhos captam uma fresta de luz, entre as cortinas.
- Há quanto tempo estão desaparecidas? – infelizmente, a voz da mulher do outro da linha não parecia preocupada, como se fosse um caso corriqueiro. E se de fato fosse?
- Não tenho certeza. Cheguei a pouco do trabalho. Pode ter sido essa manhã ou pode ter sido só nessa última hora.
- Procurou na vizinhança?
- Claro que procurei – Júlio balança a cabeça.
- Talvez só tenha se perdido – a mulher diz.
- Não, não – pressiona os lábios – Eles não saem de casa sem mim.
Nenhuma voz do outro lado.
- Pode, por favor, mandar alguém aqui? – os olhos de Júlio se enchem de lágrimas, marejando-os.
- Nossa política é não despachar unidades em casos de crianças desaparecidas por vinte e quatro horas. – soa ríspido.
- O que? – Júlio, atônito.
- Olha, na maioria das vezes a criança aparece pela manhã. Não temos recursos para ficar correndo atrás de cada garoto que sai correndo por aí com amigos.
- Não – Júlio contesta – Meus filhos não são assim. Eles não fazem isso.
- Desculpe, senhor, mas todos os pais dizem a mesma coisa.
Mais lágrimas escorrem dos olhos do homem, mas ele tenta as segurar para não chorar ao telefone. Ele seca as lágrimas e engole a saliva que se acumula debaixo da língua.
- Por favor – pede Júlio – Por favor.
- Olha, tudo que posso fazer até amanhã de manhã, é anotar a ocorrência, mas te garanto que eles vão aparecer. Eles sempre aparecem.
Sem dizer mais nada, Júlio desliga o celular e apoia os cotovelos na mesa, tapando o rosto com as grandes mãos e chorando até soluçar.
Ele só consegue parar quando todas as luzes da sua casa se apagam, e a televisão liga sozinha, com um aviso: Hora do jogo.
14h42
- Tem alguém aí? – Júlio fechou e abriu os olhos, tateando o escuro, iluminado somente pela luz da televisão, mas que também não era muita.
- Não podia te deixar sozinho agora. – Foi uma voz grossa e abafada que disse. Mas não pareceu vir de lugar algum, a não ser da TV, porque, obviamente, a voz estava mudada por algum aplicativo que engrossava a voz.
- Quem está aí? – pergunta Júlio, com a voz acelerada, mas ele não recebeu resposta – Quem está ai? – ele gritou, seu peito subindo e descendo numa respiração ofegante.
- Não adianta gritar. – a voz soou ameaçadora – Eu já tentei – e agora parecia debochada.
- Acenda as luzes. – ordena Júlio, mas a voz vinda da TV ou de qualquer lugar que seja, não parecia obedecer a ordens.
- Acenderia se pudesse. – Sussurra a voz, certamente era de um homem, passando pelo aplicativo ou não.
- O que está acontecendo? – Júlio tenta andar pela casa, tateando as paredes em busca do interruptor, mas bateu o dedo na quina de um móvel e decidiu parar.
- Não sei ainda. Espere um pouco, encontrei alguma coisa. – a voz diz, se movimentando do outro lado. Era tudo ao vivo. Não era uma voz gravada. Foi um longo tempo até que ele ouviu as vozes.
- Pai? – Escuta a voz de Victor vindo da TV – Papai? – Chamou Camila, dessa vez. A voz parecida abafada e com medo. – Está aí? Estou com medo. – termina. O peito de Júlio quase explode. A sensação que sentiu foi de levar um soco no estômago. Ouvir a voz dos filhos desesperados despertara nele uma sensação que nunca havia sentido antes.
Ódio.
- Não... – Júlio sussurrou, inconformado. Pelo menos, uma lâmpada se acendeu na sala, iluminando, um pouco, o lugar onde estava – Onde estão meus filhos e que merda você fez com eles? – a voz soava medrosa, mas ao mesmo tempo irritada – Quem é você, droga?!
- Fique calmo, fique calmo. – Pede a voz, zombando da paciência do homem que só queria voltar a ter a paz que tinha antes.
- Onde estão meus filhos?! – Júlio grita mais uma vez, inconformado. Sua mente gritava querendo respostas: Quem era aquele homem? O que ele estava fazendo? O que ele queria?
- Se você se acalmar eu posso devolver eles. Mas quero que se sente para conversarmos.
- Eu não vou sentar. Eu quero meus filhos! – Júlio se sentiu louco, conversando com a televisão.
- Se não se sentar agora, senhor Fontes, você vai receber o dedo deles. É melhor me obedecer. – ameaçou a voz.
- Se você fizer alguma coisa com meus filhos... – Júlio balançou a cabeça, engolindo as palavras, pensando na hipótese de perder os filhos. Uma lágrima escorreu.
- Só me ajude e acabaremos com isso logo. – Júlio assentiu – Senta.
Júlio, com as pernas tremendo, caminhou até o sofá e se sentou na parte mais vazia.
- Provavelmente deve estar se perguntando o que está acontecendo. – começou a voz, parecendo se divertir – Observou de perto quando uma pessoa que você amava foi brutalmente assassinada, e desde então você tem vivido nervoso e diferente, mas amoroso na maior parte do tempo. Então hoje você vai contar uma história para seus filhos, Júlio. Quer fazer algo a respeito disso?
- O que quer dizer? – Quanto mais o homem falava, mais Júlio ficava confuso.
- Você terá pistas e ordens para cumprir, Júlio. E terão que as fazer até 18h. Ou se não Victor e Camila morrerão. – a pele de Júlio formigou, então se seguiu um silêncio pensamento. Júlio pensava e mordia a própria língua. Aquele homem tinha um motivo para estar ali. Ele não sorteara um nome e partira para a casa. – Começaremos o jogo.
- Você me conhece. – Júlio franze o cenho.
- Isso é uma afirmação. – concorda o homem, embora Júlio não o visse balançar a cabeça;
- O que quer de mim? – Júlio desesperou-se.
- Começou. – Hora de jogar.
2h48
Júlio levantou do sofá quando a televisão piscou, trocando de mensagem. Agora, estava escrito.
Pista 1- Seus filhos estão onde menos imagina.
Regra 1- Coloque cento e cinquenta reais debaixo do tapete da porta de entrada e se esconda no quarto até que ouça um apito, se não receberá o dedo de um dos seus filhos.
O homem narrava enquanto a TV ainda exibia a mensagem. Corpo de Júlio congelou, mas não era nada tão ruim quanto ele imaginou que seria, então agradeceu mentalmente a Deus.
Ele correu até sua carteira e a abriu, apesar da pouca iluminação, ele procurou o dinheiro e o achou, pelo menos metade dele. Para completar os cento e cinquenta, ele foi obrigado a juntar moedas. Juntou o dinheiro num bolinho e abriu a porta de casa, os olhos doendo por causa da claridade. Colocou a quantia sobre o tapete e, como lhe foi ordenado, ele seguiu para o quarto, mas não se escondeu, ficou atrás da porta, tentado, pela fresta, observar quem apareceria para buscar o dinheiro. A boca do seu estômago se desfez em dez nós quando ele viu um corpo vestido com um capuz negro com listras delicadas vermelhas se agachar, pegar o dinheiro e correr para outro lado. Júlio sentiu vontade de correr atrás do homem, mas pensar nos seus filhos o fez parar.
Só quando um bipe soou alto na sala que Júlio saiu do quarto e seguiu a luz da TV. Quando chegou lá, a luz piscou, mas não permaneceu acesa.
- Você tem de permanecer assim, Júlio – sussurrou a voz gutural – obediente. Sua esposa não colaborou e infelizmente virou uma massa de carne...
- Como você sabe dela? – gritou Júlio, em resposta – Faz cinco anos!
- Ela gritou tanto... – e então tudo se explicou, fazendo o corpo de Júlio se envolver numa névoa de estresse e enjoo.
- Foi você... – Júlio sussurrou, seu pescoço sendo estrangulado pela lembrança – Você estava preso... – Não conseguia pensar como aquele homem havia os achado depois de tanto tempo.
- O jogo tem de continuar – a voz se divertiu.
- Eu não vou jogar nada com você! – Júlio gritou, tomado pela frustação e ódio.
- Estou com uma arma apontada para a cabeça da sua linda filha, senhor Fontes – ameaçou – E apenas um toque no gatilho vai a fazer explodir. É melhor colaborar.
Júlio ficou tentado em responder, mas sabia que nada adiantaria.
A imagem na televisão mudou.
Pista 2- Seus filhos estão sozinhos.
Regra 2- Para desespera-los, grave um áudio para seus filhos com o seu celular e diga que os odeia. Coloque o celular na soleira da porta e depois se esconda no quarto. Só volte depois que ouvir o sinal, se não um de seus filhos perderá a orelha.
- Eu não vou fazer isso... – sussurra Júlio. Os filhos entrariam em total desespero. O que era aquilo, afinal? Um jogo de tortura?
Era exatamente o que era.
- É a orelha dos seus filhos que está em jogo, senhor Fontes. É melhor se apressar.
- Eu vou procurar os dois. Não quero brincar com você.
- Todos os jogos têm regras. Não é difícil segui-las.
Bloqueando a voz do homem e ignorando o súbito refluxo que subia do seu estômago, Júlio se moveu, pegando o celular para iluminar a casa. Tentou se lembrar das pistas. Estão onde ele menos imaginava e... Bateu na cabeça, na tentativa de lembrar, e só depois de fechar os olhos e respirar fundo que se lembrou: eles estão sozinhos. Isso não ajudaria em nada!
Júlio procurou dentro dos guarda-roupa e debaixo da cama, até mesmo dentro da geladeira e em todo canto onde pudesse estar duas crianças de tamanho médio, mas não encontrou nada além de poeira. Ele voltou para a sala.
- Você já levou minha esposa. O que mais quer de mim? – perguntou Júlio para à televisão. Quem o visse, sem saber da situação, o chamaria de louco.
- Como tem tanta certeza que assassinei sua esposa, senhor? – soou sarcástico e ameaçador.
- Por que voltou? – pressionou Júlio.
- Quero que obedeça a regra do jogo, Senhor Fontes. Se quiser ter seus filhos de novo é melhor gravar o áudio e me obedecer. Não quer receber, como uma encomenda, a parte do corpo de seu filho, quer? – Sempre que o homem citava arrancar algum órgão de seus filhos, o ódio crescia dentro de Júlio junto com sua ânsia de vômito. Mas, pensando bem, se ele seguisse as regras e o jogo acabasse, logo teria seus filhos e explicaria a situação.
E foi o que fez com o coração batendo em ritmo lento, com uma tristeza palpável nos olhos.
Júlio pegou o celular e olhou para o teclado. Pensou em ligar para a polícia, mas o homem estava ouvindo tudo que ele dizia, e ele podia fazer algo contra as crianças, então decidiu seguir a regra. Abriu o aplicativo de gravação e apertou o começar.
- Crianças... – ele procurou forças para agir de forma estúpida. Não sabia nem o que falar e nem como começar – Fico feliz que tenham sumido, pelo menos por um tempo – disse a frase que nunca pensou que diria, engolindo seco e segurando as lágrimas que queriam escorrer – Desde que a mamãe foi viajar, eu não tenho mais paz. E você é uma preocupação muito grande, então... Fico feliz que não estejam aqui comigo. – Ele respirou fundo e fechou os olhos, movendo os lábios – Eu odeio vocês dois. – Ele parou a gravação e apoiou a testa no balcão, chorando, desesperando, imaginando a face de tristeza quando as crianças ouvissem o áudio.
- Coloque o telefone na soleira da porta e se esconda, senhor – e, sem lutar, soluçando, Júlio andou até a porta e colocou o celular sobre o tapete da soleira. Ele, afinal, estava fazendo o bem para seus filhos.
Júlio caminhou até o quarto e sentou-se no chão, esperando, por um tempo interminável, o bip soar na sala e ele poder voltar. Quando voltou, ouviu a voz sussurrada das crianças. E elas ouviam o áudio.
Enquanto ouviam, elas choravam e diziam “Não”, enquanto, com certeza, mordiam a ponta dos dedos, como sempre faziam quando ficavam nervosos.
- Droga! – Júlio grita, socando o balcão. Ele sente os ossos sendo moídos pelo mármore, mas nada aconteceu, além de um roxo novo no punho.
- Elas ficam lindas enquanto choram – Júlio quase consegue sentir uma menção de sorriso nos lábios do homem, apesar da imensa diversão em cada frase que dizia.
- Se você tocar em um dos meus filhos, eu juro que...
- Siga as regras e nada de ruim vai acontecer, senhor – O homem o interrompe. – Vou ser bom com você agora. Te darei três pitas sobre onde estão seus filhos e você poderá imaginar e me dizer onde acha que eles estão. Se acertar, te devolvo um deles. Se errar, terá de cumprir a última regra.
Júlio não sabia se sentia alívio ou ainda mais medo.
- Diga.
A tela da TV piscou e mudou de imagem.
Pistas 3- Estão num lugar abafado.
Estão em um lugar sem movimento.
Estão em um lugar escuro.
Regra 3- Seu celular está na soleira da porta. Pegue-o e grave um novo áudio, contando para seus filhos como sua mulher morreu. Conte os detalhes.
- Sem chance – Júlio balança a cabeça. Aquilo era demais – Eu não vou fazer isso.
- Então trate de adivinhar onde estão seus filhos. Quem sabe a brincadeira termine antes do previsto. Você só tem uma chance. É melhor pensar bem.
E foi o que Júlio fez. Ele abaixou a cabeça e se concentrou no silêncio de sua casa, ouvindo apenas sua mente dar as respostas que o ajudaria. Ele sabia que os filhos não estavam dentro de casa. Havia procurado em todos os lugares possíveis. E sabia também que as crianças não estavam longe. O homem precisava ter acesso fácil e rápido ás crianças, e ele estava aqui o tempo todo, pegando e devolvendo meu celular, então as crianças não estavam longe.
Lugar abafado.
Sem movimento.
Escuro.
Júlio chegou a uma conclusão.
- Eles estão de baixo da casa. – disse. E a porta logo se abriu. Camila entrou correndo.
- Pai!
- Filha!
Os dois correram para se encontrar e se abraçaram fortemente. Júlio passou a mão pelo corpo da filha, procurando algum ferimento, mas nada encontrou. A menina, apesar de suja, estava bem.
- O jogo acabou, filho da mãe! – Grita Júlio, levantando Camila em seu colo e correndo com ela para fora de casa, partindo para a parte de trás, onde possuía acesso para a parte debaixo da casa.
- O meu irmão está aqui – Milena aponta, e Júlio corre até lá, apesar da baixa iluminação. Mas quando chegou lá, observou, do outro lado da rua, um homem, segurando uma criança.
O homem.
Segurando Victor.
- As regras mudaram, Júlio – apesar de o homem estar tão longe, a voz ecoou alta nos ouvidos de Júlia, e parece que Camila também escutou.
- Se você fizer qualquer coisa com meu filho – Gritou, ameaçando – eu mato você. Está me entendendo? Eu mato você!
Júlio correu quando o homem apressou os passos, levando Victor no colo, que chorava.
- Vamos contar uma história para os seus filhos – a voz continuava alta, mas Júlio não conseguia pensar porquê, já que estavam tão longe um do outro. Júlio corria com Camila no colo. – Vamos contar como a mamãe partiu para o outro lado.
- Cala a boca! – Júlio gritou. Sua voz ecoando por toda a rua – Feche os ouvidos, Camila.
- Mesmo que ela tape os ouvidos, continuará escutando – o homem riu – não adianta.
- O que você está fazendo? – Júlio já estava cansado e ofegante, mas o homem não parecia disposto a parar de correr agora.
Paramos em uma rua escura e coberta por névoa. Era uma paisagem de pesadelo arrancada de um desenho. Escadas de ferro partindo dos pequenos prédios de tijolos vermelhos, ligadas de formas absurdas a outras escadas. As escadas torturadas levavam a mais patamares e mais escadas impossíveis, uma cascata de peças metálicas se estendendo até o espaço infinito do topo do prédio. Luzes de trabalho protegidas pendiam em ângulos retos uma das outras. Seus raios fracos mal iluminavam as figuras nas sombras abaixo.
Júlio colocou sua filha no colo e fechou os olhos, respirando fundo e retomando o equilíbrio.
Estava de frente para o inimigo.
Estavam separados por cinco metros ou um pouco mais. O homem usava uma camiseta regata branca e calças de algodão. Um revólver estava enfiado na cintura da calça.
- Me dê meu filho e me deixe ir embora – murmurou Júlio – Eu não chamarei a polícia.
- Eu estava conversando com Victor – o homem levantou o olhar para as vigas que se estendiam pelas escadas e os prédios – Ele me disse um detalhe importante: Você tem medo de altura. – Um sorriso se abriu em seu rosto.
O ar estagnado estava impregnado pelos odores de suor e de verniz de madeira. Sombras se estendiam para trás e para frente no asfalto gelado, enquanto o luar despontava atrás das nuvens.
- Foi você quem matou minha esposa – Júlio podia afirmar com certeza agora – Eu lembro.
- É uma boa hora para falar sobre isso. Vou contar uma história para vocês, crianças. – O homem relaxou. Ele segurava Victor no colo e tapava a boca da criança.
- Não diga nada – Júlio deu dois passos, se aproximando. Movimentou-se com tranquilidade, mas sua cautela rigidamente controlada. O homem se afastou rapidamente e sacou a arma da sua cintura, pressionando-a contra a testa de Victor. Ele soltou um gemido.
- Mais um passo e ele morre – ameaçou o homem – Você vai se afastar e vamos todos ouvir a história, se não, infelizmente, o seu filho vai morrer.
Casa da Família Fontes/São Paulo – 2011, 21h43
- Você não devia ter mentido pra mim, Diana – O homem girava em torno da mulher amarrada aos pés da cama – Você devia ter me contado – Júlio observava a cena, também amarrado, do lado oposto da sala.
- Não me machuca, por favor – Diana sussurra, com o rosto molhado pelas lágrimas – Eu vou viver com você se for preciso. Eu me caso com você.
- Eu não acredito – o homem balançava a cabeça rapidamente e lágrimas também corriam livremente por seu rosto, mas não eram lágrimas de tristeza. Eram lágrimas de raiva e frustação – Você devia ter me contado que já era casada com outro homem. Você me enganou.
- David – Diana sussurrou. Então o homem se chama David – Eu vou explicar: Eu sou gerente em uma empresa que realiza sonhos eróticos – a respiração de Diana é ofegante enquanto explica – Os homens ligam lá e conversam por telefone com nossas atendentes, ouvindo coisas sobre seus desejos, mas elas não se encontram com nenhum homem e não há contato. Você ligou para lá e o telefone tocou em uma mesa vazia, então eu atendi, apesar de não ser esse meu trabalho – David balançava uma faca afiada de um lado para o outro – Você disse que sonhava em sair com uma médica, lembra? E eu fingi ser uma, mas só para atender seu pedido e ganhar o dinheiro. É tudo fantasia. Nada do que eu disse era de verdade. Era só... um personagem.
- Você não era médica nenhuma! – gritou David – Você é gerente e tem namorado! Nada do que você disse naquela ligação era verdade.
- Justamente isso que quero te explicar, David. Olha pra mim, é o meu trabalho.
- Eu segui você durante dias e descobri a verdade... – agora, pela primeira vez, escorreu pelo rosto de David, uma lágrima de tristeza.
- Me desculpa... – murmura Diana, com a voz fraca.
- Não há desculpa – e então aconteceu. David enfiava e tirava a faca do estômago de Diana e ela cuspia sangue enquanto gemia de dor.
Júlio tenta gritar e me livrar das cordas que a prendem, mas está amordaçado e as cordas, bem presas, então só consegue fechar os olhos e ouvir a confusão.
Minutos depois Júlio o barulho das sirenes.
O próprio David havia ligado para a polícia.
Entregava-se à loucura.
Beco do Batman/São Paulo – Hoje, 18h24

- Você é louco – sussurrou , lembrando-se da história dolorosa. Havia se passado cinco anos. David havia saído. Voltara por vingança... Porque, de certa forma, Júlio havia roubado o amor da vida dele.
- Ele matou mamãe? – Camila pergunta, segurando as mãos do pai e olhando para cima. – Mamãe não está viajando.
- A gente conversa sobre isso depois, querida – Júlio tenta reconfortar a menina, mas a tentativa é falha.
Júlio encarou David que apertou Victor ainda mais sobre seu colo, mas, pelo menos, já havia guardado a arma.
- Você matou minha esposa – afirmou Júlio.
- Não gostava da ideia de dividir com outra pessoa o privilégio de atormentar minha garota.
- Você espionava minha esposa enquanto dormíamos.
- Era dolorosa a cena, devo admitir. Eu a amava tanto...
- E por que a matou?
- Às vezes, Júlio, devemos deixar que as pessoas se vão, porque... dói muito mais ver elas com outra pessoa.
Subitamente, uma corrente de força atravessou Júlio. Uma força desconhecida expandiu-se até tomar conta dele. Seu corpo era completamente vulnerável, mas tinha força e liberdade. Antes que ele tivesse tempo de perceber como o aterrorizava tal perda de controle, uma dor alucinante irradiou-se pelas suas mãos. Percebeu que estava usando seus punhos para golpear David. O revólver soltou e tombou, girando até uma distância consideravelmente longa.
Sua próxima visão foi de suas mãos se fechando em torna da garganta de David, lançando sua cabeça para trás, contra o chão, com um estalo barulhento. Manteve-o ali, apertando os dedos contra seu pescoço. Os olhos arregalaram então se esbugalharam. Ele tentou falar, mexendo os lábios de forma incompreensível, mas Júlio não ligou.
Mas esse não era Júlio.
Ele era mais do que isso.
Um zumbido alto correu dentro dele. Sentiu seu corpo se desgrudar da força descomunal. As veias do pescoço de David saltavam e a cabeça pendia para um lado. Suas mãos deixaram o pescoço do homem. Ele lutava para respirar e piscava para Júlio.
Júlio correu até sua casa, levando as crianças consigo e as deixando lá. Ele discou o número da polícia e os chamou até onde estavam.
As crianças agora tinham de lidar com o trauma que levariam para sempre em suas memórias, mas logo tudo se ajustaria, porque elas sabiam que tinham um pai que tudo fariam para protegê-las, e era isso que valia a pena.
Elas sabiam que logo tudo voltaria ao normal e o cotidiano deles seria retomado, porque lhes foi entregue uma coisa: esperança.
Uma coisa que ninguém, nunca, jamais, em hipótese alguma, podia duvidar era do amor de um pai para o filho. Era um amor diferente de qualquer outra coisa no mundo. Ele não obedece à lei ou a piedade, ele ousa todas as coisas e extermina sem remorso tudo que estiver em seu caminho.
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