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Mãe

  • Ygor Vasques
  • 23 de abr. de 2016
  • 10 min de leitura

Amamos nossas mães inconscientemente, e só nos damos conta do quanto esse amor é profundo na separação final.

- Guy de Maupassant.

Não sei o que houve. Quando era pequeno, nós nos amávamos. Ainda a amo. Posso olhar para ela, conversar, ficar ao lado dela. Mas não posso ser seu filho. Poderia ser o filho de qualquer pessoa. Menos dela.

- Precisa tomar isso fazendo tanto barulho? – Digo para minha mãe enquanto ela toma suco. Estamos sentados à mesa, para o café da manhã

- Não estou fazendo barulho. – ela nega.

- Está, sim. Parecendo um aspirador. – implico, mas ela não me responde.

- Pode dirigir mais rápido? – pergunto, encarando, mas ela segura o volante e não me encara – Vou me atrasar.

- Se eu dirigir mais rápido vou levar uma multa e não quero isso, Eduardo. – apesar do tom pacífico em sua voz, eu sabia que ela queria gritar comigo.

- Mas você para até pra um cachorro atravessar. – implico mais uma vez, revirando os olhos.

- Vamos chegar a tempo. Fique tranquilo. – mas eu sabia que se ela permanecesse a cinquenta km por hora, não chegaríamos nunca, mas eu não a respondi, e virei para encarar a paisagem do lado de fora.

- Marco pode dormir lá em casa sábado? – pergunto depois de uma tempo.

- Sim... – ela respira fundo.

- Tudo bem, mas você parou pra outro cachorro atravessar. – eu estava ficando irritado – Acho que ele não está com pressa de chegar do outro lado da rua.

- Eduardo, se não está feliz... – ela respira fundo e prende as palavras – Eu pararei pra quem eu quiser e você dirige na velocidade que quiser quando tiver seu carro aos 18 anos. Eu dirijo na velocidade que eu quiser o meu! – e agora ela havia ficado irritada.

- Você não ganha nada sendo lerda assim. – cruzo os braços.

- Evito um acidente. – rebate.

- Ainda é cedo, não tem ninguém na rua, praticamente. – contra fatos, não há argumentos.

- Se não está feliz pegue ônibus, como seus amigos! Já chega. – ela grita.

- Então conte quantas tartarugas são mais rápidas que você dirigindo e me deixe quieto. – Encosto minha cabeça no assento e viro o rosto.

- Você é igualzinho seu pai. Não falava com todo mundo. Sempre fica irritado fácil... Vocês dois se acham muito importantes. – ela termina. E aquilo não era de todo mentira. Mas eu não ia concordar.

Um homem a ultrapassa, buzinando.

- Tome um calmante! – ela grita para o homem, mas ele não ouviu – Cara estúpido. – Desabafa para mim.

- Ele tem razão. Você está abaixo do limite de velocidade.

- Não estou. – rebate, mas ela sabe que está, só não quer “dar o braço a torcer”.

- Está sim. São 80 km. Você está a 60 km. – Fatos.

- Não estou errada. – Orgulho.

- Mãe, você dirige mal e... – começo.

- Se não está feliz pode sair e pegar o ônibus! – ela grita mais uma vez.

- Eu vou fazer isso mesmo. – ela para o carro e eu desço. Pego um ônibus minutos depois.

Chego atrasado à escola.

Quando saio da escola, vou direto para o trabalho, sem tempo para o almoço, porque meu chefe é um velho cretino que não nos dá tempo nem para respirar, então não me atraso e já entro lá limpando as prateleiras. É um supermercado no centro da cidade. Mas, pensando bem, não é tão super assim.

Vou para casa de Marco, meu melhor amigo, e fumamos enquanto estudamos geografia. Ele é disperso enquanto xingo os professores e analiso um mapa. Eu reclamo e digo o quanto os adultos são imaturos.

- Quando olhamos pra você fixamente, Eduardo, podemos ver um velho que gritará para as crianças "Não pisem na minha calçada", ou furando a bola que cair no seu quintal. O que vier primeiro. – ela dá os ombros, os olhos pairando sobre a luz da lâmpada.

- Cala a boca - soco o ombro dele.

- Olá - Sua mãe nos interrompe, batendo na porta, sorrindo. Ela é loira e alta, sempre chique, preparada para qualquer ocasião.

- Chegou cedo - diz Marco, dando mais um trago.

- Tive que trazer um estagiário para casa, então... Estão estudando muito?

- Claro - reviro os olhos - Marco não ajuda muito, mas eu relevo.

- Vai ficar para jantar, Eduardo? – ela pergunta, enquanto Marcos me belisca sem que sua mãe perceba.

- Não. Obrigado. Fica pra próxima. – dou meio sorriso.

E assim eu me despeço de Marco e vou para casa. Não era o que eu queria, mas eu não tinha escolha. Por enquanto.

No jantar, minha mãe faz barulho enquanto come e eu luto para não a mandar parar de imitar um camelo ao mastigar.

- Você está bem? - ela pergunta virando o pescoço.

- Tô - respondo, dando os ombros.

- Percebi - soa sarcástico e eu odeio que duvidem de mim.

- Eu estou legal, mano. Você quer que eu pule pra demonstrar como eu estou bem? - como mais rápido, batendo o garfo no fundo do prato.

- Quero que pergunte como foi o meu dia.

- Não quero saber do seu dia, velho. Essa é a diferença.

- Sabe que odeio quando usa gírias.

- A sala está vazia - encaro-a - Pode ir comer lá se não quiser me ouvir.

- Você não precisa ser tão estúpido sempre.

- Desculpa - largo o talher - Só tô um pouco estressado, tá legal? Passei o dia inteiro naquela sala cheia de idiotas, com professores lerdos e um diretor sem voz ativa. Não vale a pena. É muito chato.

- Acha que seus amigos falam desse jeito com a mãe? - ela só olha para baixo.

- Acha que as mães educaram os filhos como você? - devolvo. Ela me encara, sem resposta.

- Eu cozinho, faxino, te dou dinheiro e mantenho sua roupa limpa e guardada. Você é ingrato. Nem conversar pode mais.

- Não mesmo. Antes, quando conversávamos, eu tinha cinco anos e ninguém além de você.

Ela toma seu suco, sem conseguir me responder. Percebo que estou sendo ríspido demais.

- Mas a comida está gostosa - tento remendar a situação, pelo menos superficialmente.

- Pelo menos isso. Não me mato na cozinha pra não ouvir nem um agradecimento.

- Contrate uma cozinheira e seus problemas vão embora.

- Não temos dinheiro, você sabe disso.

- Eu sei - levanto da cadeira e coloco meu prato na pia - Você já disse isso milhares de vezes – encosto-me no balcão – Mas, enfim, Marco chega mais tarde no sábado. Meia noite, mais ou menos. Mas eu abro a porta.

- Deveria me perguntar se ele pode dormir aqui. Essa casa ainda é minha.

- Eu te perguntei. Essa manhã. - Estou incrédulo.

- Não acho que seja uma boa ideia.

- Por que não seria? Você tinha dito sim! Está ficando louca e velha?

- Não tente me manipular, Eduardo!

- Vai cair sua língua se o deixar vir?

- Não tem problema ele vir. Tem problema você não falar comigo antes!

- Está com Alzheimer ou está me testando, velho? – meu estresse se tona palpável.

- Se não gosta das minhas regras, vá morar com seu pai. Entendeu? – ela grita, brava.

E não respondo no momento, porque os nós dos meus dedos estão brancos e doendo de tanto aperta-los. E se eu não respirasse fundo eu teria jogado os pratos do escorredor nela.

- Eu odeio você - sussurro.

- Não faz diferença, Eduardo. Sinceramente. Você odeia a todos que te contradigam, que tenham razão!

- Qual o real motivo pra não deixar o Marco vir?

Ela pensa e respira fundo antes de responder.

- Não vou conversar sobre isso. - ela se vira, como se eu não estivesse presente.

- Os sentimentos dos outros que se danem. É assim?

- Essa é a sua regra, Eduardo.

Eu pego-a levemente pelo braço e a viro, encarando-a.

- Mesmo quando tento imaginar a pior mãe do mundo... Você ganha longe.

Deixo a cozinha e subo para meu quarto.

Ou eu fico louco, ou vou me matar.

O que vier primeiro.

Ela não me queria. Sou apenas um fardo. Ou ela não nasceu para ser mãe. Casou e teve um filho porque a sociedade espera que a mulher faça isso. É o que a sociedade espera que as mulheres façam.

Jorge é um amigo que conheci na internet. Embora eu não acredite que seu nome seja Jorge. Não faz diferença.

Jorge156: Por que não fala da sua mãe para mim?

EduCKJ: Não gosto do assunto.

Jorge156: Problemas? Tenho vários com meu pai. Desde que eu era pequeno. O mundo acha que, com o tempo, conseguimos amar os pais e que tudo se arranja, mas não falo com mais pai há oito meses.

EduCKJ: Eu não tenho a menor afinidade com minha mãe. Não temos nada em comum. Nada!

Jorge156: "A mãe de um filho jamais será sua amiga".

EduCKJ: E quanto ao que Deus disse de amar o pai e tua mãe?

Jorge156: Você é católico ou alguma coisa assim?

EduCKJ: Acho que existe alguma coisa, ou alguém. Mas não sei se é Deus, Buda, ou... Sei lá. E se Deus existe, ele se enganou de mãe para mim.

Jorge156: Relaxa, cara. Um dia tu sai de casa e a distância meio que melhora.

EduCKF: Tomara.

Mandamos emoticons, nos despedimos e desligamos.

Se minha mãe e eu não nos conhecêssemos, certamente nos daríamos bem.

- Mãe? - Entro na sala.

- Oi, Eduardo - ela não me olha, de fato. Seus olhos estão presos à televisão que exibe um seriado.

- Tem um minuto para conversar? - sento no sofá.

- Pode ser mais tarde? Estou ocupada agora.

- Você está gravando o programa.

- Não desliga... - mas eu já havia desligado. Sento-me ao seu lado e seguro suas mãos.

- Encontrei a solução pra nossa relação.

- Ah, sim?

- Penso que tenho que me mudar.

- Sério? – ela não está interessada no assunto, mas não deixo de força-la me ouvir, mesmo assim.

- Pesquisei e tem muitos anúncios. Podemos ir ver. Tem vários bons, limpos e num bairro agradável. Um, inclusive, fica perto do metrô, da escola, dos meus amigos! E você não vai mais me levar a todo lugar.

- Nunca cuidou de suas coisas, como vai fazer? Vai enlouquecer.

- Porque está sempre atrás de mim! Sim, é por isso! Não terei escolha, não posso morar num chiqueiro. Terei de limpar minha própria sujeira. Sei que vai funcionar!

- Com o dinheiro que herdou do seu avô?

- Sim. Exato!

- Pode ser uma boa ideia. – ela assente.

- Estou tão feliz, mãe. Eu te amo. Eu te amo. - Abracei-a e dei um beijo em sua bochecha. Não foi tão horrível dessa vez.

No dia seguinte eu fui ver a casa. O vendedor disse que o último morador era um porco e ele teve que reformar tudo, então depois me apresentou o banheiro, cozinha, sala e um quarto. Não era grande coisa, mas o suficiente para resolver todos os meus problemas.

- Mãe, preciso conversar - aviso, parando em frente a televisão, onde, mais uma vez, ela assistia ao seriado.

- Pode falar nos comerciais? - ela pergunta, enfiando um punhado de salgadinho em sua boca.

- Mãe...

- Fui ver o apartamento - revelo.

- Que apartamento?

Meus olhos se abaixam.

- O que eu te falei ontem. E é perfeito pra mim.

- Eduardo, pensei nisso hoje, no trabalho, e não é bom alugar um apartamento aos 16 anos. Espere até os 18, querido.

O sorriso que estampava meu rosto desapareceu.

- Como é? - pergunto. - Falei disso ontem e você achou uma boa ideia.

- Não tem sentido alugar um apartamento aos 16 anos. Está sonhando alto!

- Você me dá nojo - grito - Você me da nojo!

- Tá. Agora sai da frente da TV.

- Eu te odeio. Muito.

Deixo a sala e subo para meu quarto. Naquela noite, desenho minha mãe morta, num caixão.

Só digo o que penso. É verdade que amo minha mãe, mas não é um amor de filho. É estranho porque se alguém fizer mal a ela, certamente eu mato essa pessoa. Sério! Ao mesmo tempo, eu posso pensar em milhões de pessoas que amo mais que minha mãe. E isso me confunde.

Saio do trabalho mais cedo, porque briguei com um cliente e meu chefe me dispensou, como também tirou uma porcentagem do meu salário. Vou para a casa do Marco e ficamos jogando Trilha enquanto ele filosofa sobre a vida com um cigarro entre os dedos.

Vi a mãe dele e ele correndo pela casa, como se fossem amigos, rindo como adolescentes. Fiquei com inveja, talvez, porque ambos conversam sobre qualquer assunto e raramente discutem. Eu ri, observando-os, mas também fiquei triste. Por isso, fui embora.

Minha mãe gastou dez minutos de nossas vidas me mostrando um quadro que ela havia comprado, com desenhos geométricos e bastante colorido. Eu me fingi de interessado, porque eu não estava bem para discutir, algo em mim mudou e fiquei triste, então apenas levantei e segurei seu rosto em minhas mãos enquanto ela analisava o quadro que havia colado na parede.

Pela primeira vez em anos, nos encaramos.

- Eu te amo – sussurro. E era sincero.

- Eu também te amo, querido – ela livrou minha testa de um fio de cabelo rebelde.

- Eu falo isso, para que você não se esqueça – minha voz soa triste, mas ela não nota.

Ela não responde, apenas sorri. Eu subo para o meu quarto e durmo, disposto a mudar. Brigar com minha mãe não me dará nenhum benefício, então decido guardar meu estresse dentro de mim e desperdiçar numa almofada, quando eu estiver sozinho.

No outro dia, vou para escola e ao trabalho, e trabalho mais do que qualquer outro funcionário. Não reclamo e nem brigo com ninguém. Compro carne, limões, macarrão e vou embora para casa.

Quero mudar, e vou mostrar que posso.

Lavo as roupas, organizo e aspiro a casa, mudo algumas coisas da decoração e mais tarde preparo a janta. Macarrão, carne ao molho e torradas.

- Isso que eu chamo de um belo prato! – minha mãe vangloria, comendo do macarrão.

- Está bom? – pergunto.

- Sim. Delicioso – pressiono os lábios. – Fez para mim?

- Sim – mordo uma torrada.

- Está ótimo. Obrigado.

- Como foi seu dia? – pergunto. Ela para de mastigar e me encara, séria.

- Foi boa – vejo uma menção de sorriso em seus lábios.

- Que bom.

- O que é esse barulho? – refere-se à máquina.

- É a máquina de lavar. Botei pra bater.

- Verdade?

Assinto.

- Que bom – mais um sorriso.

- Sim.

E ela está feliz.

Depois, estou lavando a louça e ela desce as escadas.

- O que aconteceu? Alguém te fez uma lavagem cerebral?

E eu só sorrio, mas ela não vê.

Vou contar o que aconteceu, afinal: Briguei mais diversas vezes com minha mãe e ela considerou a ideia de me levar a um psiquiatra e depois a um colégio interno. Ela descobriu com quem namoro e também vivemos um drama até que ela pudesse aceitar. Depois, no final, ela me abraçou. E sei que vamos brigar mais diversas vezes, mas sei que vamos nos acertar depois de tudo. Sempre nos acertamos.

Minha mãe me beija.

Estamos felizes. E vamos viver assim por um tempo.

Imagino que, às outras pessoas, odiar a mãe pareça um pecado. É uma hipocrisia. Estou certo de que também odiaram as suas mães. Talvez um segundo ou todo um ano.


 
 
 

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