Da cor da noite
- Maycon Queiroz
- 14 de jun. de 2016
- 6 min de leitura

Por muito tempo relutei se contaria essa história. Minha hesitação se deveu pelo fato de ser uma história praticamente real. Não gosto de contar minhas peripécias amorosas por aí. Ainda mais essas proibidas. Mas que fazer se eu precisava escrever um conto? Há realidades e ficções nesta história. Porém eu deixo para vocês tentarem deduzir que parte parte da realidade para a ficção e que parte parte da ficção para a realidade.
Vamos ao que interessa!
Estava eu ali naquele trampo chato que só vendo, amaldiçoando Deus e o mundo pela minha má sorte de ficar 12 horas mofando numa cadeira dentro de um cubículo de um metro quadrado. Olha que ainda tinha que aturar um calor dos infernos. Como se não bastasse tudo isso, era preciso sorrir para cada riquinho que aparecesse no condomínio.
Questionei meu chefe um tempo depois sobre isso:
- Você disse para eu olhar e sorrir... Sorrir? Eles nem olham na nossa cara. Pra que sorrir?
- Você não tem que questionar, tem que obedecer. Agora vai lá que está saindo alguém. Vá sorrindo, diga “bom dia” com alegria.
- Sim, senhor!
Lá fui eu com minha simpatia. Fiz questão de dizer “bom dia” bem estridente. O camarada passou direto, estava com os vidros do carro abertos, mas nem se dignou a olhar para o lado e responder minha saudação. (importante ressaltar que eu estava sorrido; tudo bem, eu não estava sorrindo, pode-se dizer que eu mostrava os dentes, não era sorriso naquela falsidade).
- Tá vendo?!
Ele nada falou. Se raios laser saíssem de seus olhos minha cabeça teria caído ao chão esfumaçando.
-Esquece essa baboseira de filosofia, moleque.
Ele falou aquilo e saiu. Naquele momento achei que ele tivesse viajando, que não tinha nada a ver com filosofia aquela situação, só depois que fui entender e percebi que ele estava certo.
Os dias foram passando e eu ali mofando, melhor, derretendo. Até que um dia tudo mudou. Devo essa honra a São Pedro.
De repente o céu escureceu, clarões de raios riscavam o horizonte. O vento forte balançava as árvores com fúria. Os galhos se dobravam, mas resistiam bravamente ao não se quebrarem. Eu podia ver a agonia a cada rajada. A primeira pedra branca caiu sobre o BMW, amassou com gosto a lataria (desnecessário dizer que fiquei feliz, mais desnecessário ainda dizer que era o mesmo carro do bacana que me ignora quando sai). Foi um soco dado por São Pedro direto nas ventas do consumista. Bem feito, filho da puta.
Outras pedras caíram. Que mira boa, hein, Santo. As maiores caindo sobre os carrões de quem tem muito e não compartilha nem sorrisos com os pobres. Achei bonito o chão ficar todo branco, estava curtindo ver o gelo se acumulando até que uma árvore caiu. Adivinha onde? Errou, caiu sobre um muro. Mas foi bem perto da BMW.
Quando a luz caiu começaram a aparecer os playboys. A cara dos caras quando viam os carros eram dignas de registro, a melhor do dia (Pena que eu não tinha um celular que batia foto. Que foi? Dez anos atrás era caro pra caramba, só rico mesmo para ter deles). Minto, a melhor do dia apareceu logo depois: aquele cabelo black revolto, todo enrolado em cachos negros, a pele escura, o sorriso na face mostrava os dentes brancos que brincavam de esconder sob os lábios carnudos. Eram as cores do dia que se manifestavam naquele rosto. Ela vestia-se bem e não me parecia chateada com os estrados que a ventania e a breve chuva de granizo causaram.
Logo me perguntei “Por onde andava, Nega, que nunca se mostrara”.
Pelas roupas que ela trajava não foi difícil deduzir que não se tratava de uma das muitas empregadas domésticas que ali existiam.
Minha imaginação pôs-se a trabalhar, entretanto a dificuldade era muita. Eu só queria saber de contemplá-la. Ah, um olhar dela para mim seria o céu.
Pela primeira vez não comemorei o fim do expediente. O meu colega chegou e me liberou para ir embora, ele assumiria o posto. Antes de partir perguntei quem era a Deusa de ébano que se encontrava parada naquela calçada em frente. Ele olhou desinteressado e secamente respondeu:
-Nunca vi!
A resposta não poderia ser pior. Sem alternativa fui embora cabisbaixo. Minha angústia piorou no exato instante em que me dei conta que era sábado e eu não trabalharia no domingo. Dois dias naquela expectativa. (devo ressaltar a quem ler estas páginas que a beleza negra me enlouquece, quando se tratava de beleza de nível tão elevado poderia me levar a óbito).
Cheguei em casa já noite. No caminho entre o ponto de ônibus e minha residência a chuva voltou a cair. Nem apertei o passo, ao contrário, gostei. Estava precisando lavar a alma com água fria. Fui lentamente caminhando.
Sem pressa fui tomar banho, trocar a roupa molhada. Minha esposa não estava em casa, o que pra mim foi ótimo, pude fazer minhas abluções com calma. Enquanto me banhava pensava nela e no que faríamos caso ela estivesse ali naquele banheiro comigo. Pensava em levá-la para passear (em passeios gratuitos porque dinheiro eu não tinha). Aí, me lembrei que teria um aniversário de minha cunhada para ir. A chuva seria uma boa desculpa para faltar.
Após estar devidamente seco peguei o Castro Alves de que tanto gostava para ler. Poesia de exaltação a mulher negra, essa cara era foda, pena que morreu cedo. Nem deu tempo de ler dois poemas fui interrompido.
Ela chegou, disse “boa noite”, me deu um selinho e sentou-se na cama a meus pés. Nada disse. Continuei minha leitura.
- Cê viu que chuva? – disse ela
Permaneci em silêncio.
- Caiu duas árvores na rua de cima. Quase pega uma pessoa.
Eu nem estava interessado em responder, mas como eu sabia que ela queria dizer alguma coisa e não gostaria de chatear minha recente esposa (besteira que fizemos casar com 18 anos).
- Natural chover assim nessa época – respondi – mas normalmente passa logo e o céu se abre.
O rosto dela se abriu em alegria quando falei aquilo, logo depois eu descobriria que o céu também se abria.
- Isso mesmo, o céu está limpando. Não vai atrapalhar o aniversário de minha irmã.
- Eu estou super cansado, precisamos mesmo ir?
Ela mudou completamente suas feições. O rosto alegre se foi.
-Sempre assim – começou dizendo em baixo tom – quando se trata de festa na casa de minha mãe você diz que está cansado, que não quer ir. Eu fico triste com isso, você sabe que eu gosto muito de ir lá. Já faz quase um ano que nos casamos e quase não saímos, me sinto presa. Só tenho lá para ir, onde me dá alegria. Não te cobro quase nada, só que me acompanhe até a casa de minha mãe para o aniversário de minha irmã. Todas as minhas amigas estarão lá.
O tom lamentoso dela me comoveu. Eu já estava preparando para pedir desculpas e dizer que ia quando ela completou abrindo um sorriso maroto:
- Minha mãe fez aquela torta de limão que você adora. Ligou hoje só para dizer que guardou um pedaço grande para você. Tem mais, minha mãe mora logo ali, 10 minutos de caminhada, se tiver chato a gente volta logo.
-Desculpe, amor. Eu irei com você na festa.
Ela deu pulos de alegria, se jogou em meu pescoço e me encheu de beijos, abraços, carícias, mordiscadas...
Vestimo-nos e fomos caminhando devagar. A festa já começara, mas prometia virar a noite, por isso não carecia ter pressa. Enquanto andava meu pensamento voltava à mina do condomínio. Ficou nela a noite toda. Ainda mais que minha cunhada, que era também uma beleza de mulher, tinha amigas ainda mais belas. Belas, negras, de cabelos revoltos e cacheados, mas nada comparável a cena daquela tarde. Já estava me assustando, minha respiração ofegava cada vez que via uma moça e sua face tinha a aparência dela. Ainda bem que minha mulher estava entretida com as amigas relembrando as aventuras de escola. Cada canto que eu olhava só dava ela. Comecei achar estranho e duvidar que tivesse realmente vendo mulheres negras ou espectros daquela beleza da cor da noite.
A festa transcorreu normalmente. Até tive vontade de ir embora, mas não comentei nada por que minha doce e bela esposa estava curtindo muito.
Na segunda fui contente para o trabalho. Nem me importei com o trânsito costumeiro de São Paulo a Alphaville. As duas horas de viagem passaram que nem vi. Nem cochilei, ao contrário, minha mente estava ligadíssima.
Minutos após assumir meu posto... eis a surpresa maravilhosa.
- Com licença! – Disse a voz atrás de mim.
- Bom dia – Respondi com um sorriso (desta vez era um sorriso sincero).
- O senhor está ocupado?
- Não, estou a sua inteira disposição.
Ela sorriu sem jeito e pediu que eu a ajudasse a carregar umas caixas para seu carro. Estava amassado também, devido ao granizo de sábado. Prestei condolências e ela disse que não tinha problema. (Desapegada de coisas materiais, mulher perfeita).
Quando terminei, ela me agradeceu e eu aproveitei para perguntar seu nome.
Liryene!
Não sei se se escreve com “y” ou não, mas achei mais bonito assim. Então é assim que escrevo. Consegui segurá-la por quase 10 minutos de conversa, mas ela se foi. Deixei que fosse, pois me disse que era funcionária da moradora daquela casa e passara o fim de semana lá devido a compromisso de trabalho. Pensei que voltaria. Trabalhei naquele inferno por quase um ano e ela não voltou.
Até hoje ainda espero a sua reaparição, mas da liryene original, pois eu já tenho a minha. 5 anos depois minha filha nasceu e foi, obviamente, batizada de Liryene. A mãe queria saber por que, evidente que eu não falei.
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