Pó
- Leonardo de Cássio
- 24 de jun. de 2016
- 40 min de leitura

Se você é adolescente agora, é improvável que tenha nos conhecido bem. Somos tios sombra, seus padrinhos anjos, o melhor amigo da sua mãe, da sua avó da escola, o autor daquele livro que você encontrou na seção gay da biblioteca da faculdade. Somos os personagens em uma peça de teatro antiga que você ainda desconfia se foram de fato verdade como julgam. Somos os fantasmas da geração mais velha que sobrou. Você conhece algumas das nossas músicas. Eu posso ser o Renato Russo ou qualquer outro. Não tenho nome no lado de cá.
Não queremos assombrar vocês com nossa melancolia interminável. Não queremos que nossa geração futura seja ranzinza ou gravita. Você não ia querer viver uma vida assim, e também não vai querer ser lembrado assim. Seu erro seria ver nossa semelhança em nossa morte. A parte da vida foi mais importante.
Nós te ensinamos a viver.
São 8h56 de uma noite de sexta-feira e Gustavo Riggs não está em lugar nenhum. Está no quarto, sozinho, e parecer ser lugar nenhum para ele. Ele poderia estar fora do quarto, cercado de pessoas, calor humano, cheiro de perfumes e dores de vozes na cabeça de todos, mas a sensação ainda seria a de lugar nenhum. O mundo aos olhos dele é insípido e chato. Todas as sensações vazaram dele, e sua energia escapam pelos corredores nebulosos de sua mente, provocando um barulho furioso e frustrado. Ele está sentado na cama e está lutando dentro de si mesmo, e a única coisa que consegue pensar em fazer é entrar na internet, porque a vida lá é tão insípida quanto a vida real, sem as expectativas da vida real. E elas eram uma droga para Gustavo. Ele só tem 17 anos, mas online poderia ter 20, 13, 33, 40 e até mesmo 88. O que a outra pessoa quiser. Ele tem perfis falsos, dados falsos, fotos falsas e histórias falsas. As conversas são, basicamente, teoricamente, falsas, também, cheias de flertes que ele nunca leva até o fim, de pequenas centelhas que nunca vão virar fogo. Porque uma hora todos cansam de apenas tirar faísca de duas pedrinhas que se batem. Ele não vai admitir, mas está procurando as surpresas de uma coisa genuína. Ele abre sites ao mesmo tempo para manter a mente ocupada e menos barulhenta, para fingir para si mesmo que saiu do lugar nenhum, mesmo ainda se sentindo em lugar nenhum. Ele fica tão perdido na busca que nada mais parece importar, e o tempo perde valor e deve ser usado em coisas sem valor.
O silêncio é igual à morte, nós dizíamos. E por baixo disso havia a suposição, o medo de que a morte fosse igual ao silêncio.
Vocês não fazem ideia do quanto as coisas podem mudar rápido. Vocês não fazem ideia de como, de repente, os anos podem passar e as vidas podem terminar.
A ignorância não traz felicidade. Felicidade é saber o significado de ser livre.
Em algum momento todo mundo tem que dormir. É a primeira dica de que o corpo sempre vence. Não importa o quanto estamos felizes, não importa o quanto queremos que a noite se prolongue infinitamente, o sono é inevitável. Pode-se conseguir escapar dele por um ciclo, mas a necessidade do corpo sempre vai voltar.
Nós lutávamos contra ele – contra o sono, não contra eles, porque não tínhamos força.
Mas o sono não bateu em Gustavo. Ele ainda está acordado. Mas não por muito tempo. Ele tecla com pessoas de outros fusos horários, conversa com homens que estão acordando, homens que estão fugindo do trabalho por uns instantes. Ele engana a todos, mas não pode enganar a si mesmo. Ainda está em lugar nenhum, e, por mais que olhe, não há nenhum outro lugar à vista, principalmente dentro dele mesmo. Ele acredita que o mundo está cheio de pessoas burras e desesperadas, o que o faz se sentir burro e desesperado por estar falando com elas. Ficamos preocupados com isso. Dizemos para ele ir dormir. Tudo fica melhor depois de uma boa noite de sono. Mas ele não pode nos ouvir. E continua o que está fazendo. Seus olhos começam a se fechar cada vez mais. Vá para a cama, Gustavo¸ nós sussurramos. Vá para sua cama.
Ele adormece em frente ao computador. Homens de outros fusos horários perguntam se ele ainda está ali, se foi embora. Em seguida, passam para novas janelas, deixando a de Gustavo vazia. Ele não tem como reparar quando todos saíram da sala e não tem como prever o quem vai acontecer quando o sol cruzar seu quarto novamente.
O mundo que desperta. Até o mais cínico dentre nós recebe com um toque de esperança. Talvez seja uma reação química, nossos pensamentos em comunhão com o nascer do sol criando aquela fé breve e intensa no que está surgindo.
Ficamos em silêncio conforme o sol sobe por trás do horizonte. Onde quer que estejamos olhando, fazemos uma pausa. Acordar é difícil, e acordar é glorioso. Observamos vocês se mexerem e saírem cambaleando da cama. Sabemos que a gratidão é a última coisa na sua cabeça, mas vocês deviam sentir gratidão.
Vocês têm mais um dia.
Olhamos para a casa de Gustavo e não sorrimos mais. Ele ainda está dormindo na escrivaninha, com o rosto quase de frente para o teclado e o computador ligado desde a noite passada. Seu pai está entrando no quarto e não parece feliz. Tidas as janelas de bate-papo de Gustavo ainda estão abertas na tela.
Trememos ao reconhecer o que vai acontecer. Vemos no rosto do pai dele. Quem entre nós nunca fez o que Gustavo acabou de fazer? Esse único erro. Esse único escorregão. A revista aberta no chão. Os bilhetes de amor escondidos debaixo do colchão, o lugar mais óbvio do mundo. O anúncio de cueca dobrado dentro de um livro pronto para cair quando for aberto. Os desenhos que deveríamos ter escondido. O nome de outro garoto escrito repetidamente na última folha do caderno. As roupas que enfiamos no fundo do armário, julgando ser o lugar mais seguro do mundo. Uma foto do garoto que amamos, que não faz ideia que o amamos, capturado de forma alheia, sem saber que a câmera estava ali. Uma foto que guardávamos na gaveta de cima da escrivaninha, em um compartimento da carteira, em um bolso perto do coração. Devíamos ter nos lembrado de tirar de lá antes de jogar a roupa no cesto de roupas sujas. Devíamos saber o que aconteceria quando nossa mãe abrisse a gaveta em busca de uma caneta. É só um amigo, nós argumentaríamos. Mas, se ele era só um amigo, por que estava escondido, por que ficamos aborrecidos por ele ser descoberto?
Queremos acordar Gustavo. Queremos fazer com que a porta faça mais barulho ao ser aberta. Queremos que os passos do pai dele soem como trovão, mas eles soam como relâmpago. O pai sabe fazer isso, com a raiva ganhando velocidade silenciosa. Ele se inclina sobre o filho e lê os finais das conversas da noite anterior. Algumas são triviais, um dialeto entediado.
“E aí?
Nada de mais e vc?
Nada de mais.”
Mas outras são fracas, sexuais, explícitas.
“Eu faria com você o seguinte (...). É assim que você gosta?”
Olhamos de perto, torcendo pela preocupação surja no rosto do pai. Preocupação pode. Preocupação é compreensível. Mas nós, que procuramos sinais de preocupação por tanto tempo nos outros, só vimos ódio, nojo, repulsa, asco.
- Acorde – diz o pai.
Raiva. Desgosto.
Como Gustavo não se mexe, ele fala de novo e chuta a cadeira.
Isso o acorda.
Gustavo dá um pulo, com o rosto pressionado contra o teclado, criando uma palavra impronunciável. Suas lentes de contato parecem panquecas secas em seus olhos. Seu hálito parece de minhocas matinais.
Seu pai chuta a cadeira de novo.
- É isso que você faz? – É uma acusação repleta de ira – Quando estamos dormindo. É isso que você fica fazendo?
Gustavo não entende a princípio. Mas levanta a cabeça e engole a saliva que estava parada na boca e vê a tela. Ele fecha o laptop rapidamente, mas é tarde demais. Ele meio que sabe disso.
- É isso que você faz na minha casa? É isso que você faz com sua mãe e comigo?
De uma distância fria, sabemos que há confusão no coração dessa repulsa. E nesse coralão bate um fluxo regular de ódio e ignorância.
Sabemos que Gustavo não tem a menos chance.
Sentimo-nos impotentes.
O pai dele o pega pela camisa e o levanta, para poder gritar olhando nos olhos dele.
- O que você é? – ele quase cospe – Como pôde fazer isso?
Gustavo não sabe. Ele não sabe o que dizer. Não sabe o que fazer. Nem existem respostas para essas perguntas.
O rosto do pai está vermelho agora.
- Você sai por aí trepando com homens? Enquanto estamos dormindo, você sai e trepa com eles?
- Não – grita Gustavo – Não!
- Então o que é isso? – um gesto enjoado para o computador fechado – Que tipo de putinha você é?
Trepar. Putinha. Não são palavras que um filho deveria ouvir do pai. Mas a ira do pai tem uma língua própria. Não precisa falar como um pai.
- Pare – sussurra Gustavo com os olhos se enchendo de lágrimas – Apenas pare.
Mas ele não para. O pai de Gustavo o empurra contra a parede. Impacto. A parece sacode e as coisas caem. Gustavo não está mais em lugar nenhum. Está em um lugar agora. E é um horror. É tudo o que ele nunca quis que acontecesse, e está acontecendo.
A mãe entra no quarto correndo no quarto. Por um momento, ficamos gratos. Por um momento, achamos que vai parar. Mas o pai não liga. Continua a gritar. Viado. Desgraça. Demônio. Doente. Putinha.
- O que está acontecendo? – grita a mãe – O que está acontecendo?
Gustavo não consegue parar de chorar, o que deixa o pai com mais raiva ainda. As lágrimas salgadas caem no machucado no canto da boca. Mas não arde tanto quanto sua alma que pega fogo. E agora o pai está explicando para a mãe:
- Ele se vende pra homens na internet.
- Não – diz Gustavo – Não é nada disso.
- Abra – ordena o pai para a mãe – Leia.
Gustavo dá um pulo e tenta agarrar o laptop, mas o pai o derruba e prende enquanto a mãe abre o computador. A tela se acende. Ela começa a ler.
- É só bate-papo – Gustavo tenta dizer para ela – Nada acontece nunca.
Mas a expressão no rosto dela enquanto lê... alguns de nós não precisam virar a cara. Nós reconhecemos essa expressão. Alguma coisa dentro dela está se partindo. E, com isso, ela está desistindo de nós.
Não há nada mais doloroso do que ver alguém desistir de você. Principalmente se for sua mãe.
Algumas mães se recuperam desse momento. Algumas não. E, quando acontece, o problema é que você não tem como saber que rumo aquilo tudo vai tomar.
- Está vendo? – pergunta o pai, vermelho. – Eu tenho nojo de você, Gustavo. Nojo!
Um fusível dentro de Gustavo finalmente chega ao núcleo explosivo e detona. Ele precisa fazer isso parar. Precisa fazer alguma coisa. A intenção dele não é lutar para se defender, embora mais tarde pareça que foi luta. Ele só quer que a mãe pare de ler. Por isso, ele pula em cima do computador e o arranca das mãos dela. Ela se encolhe de surpresa, e o pai não está preparado para segura-lo. Mas, apesar de Gustavo ter tirado o laptop das mãos dela, não consegue segura-lo na dele. Ele pega de qualquer jeito, e o laptop cai com tudo no chão, fazendo um som terrível. Ele estica a mão e o alcança, mas agora o pai está em cima dele, puxando-o pelas costas, girando-o. Gustavo sabe que um soco está a caminho e levanta o laptop pra bloqueá-lo. O punho do pai é rápido demais, e acerta a bochecha dele antes de ele conseguir levantar o computador.
- Não! – grita a mãe.
Ela entra entre os dois, isso ela faz. Gustavo não hesita. As chaves e o celular estão no bolso. Então, ele foge. Sai correndo do quarto com o pai atrás, gritando com ele, gritando com a mãe. Sai correndo pela porta, sai correndo para o carro. Vê os pais vindo atrás, ouve o pai gritando, mas não entende as palavras. Quando liga o carro, a música explodindo pelos alto-falantes. Ele não verifica para ver se há carros passando quando sai da vaga, embora saiba que isso só vá irritar mais seu pai.
Ele só demora dez segundos para deixar os pais.
Fora os estranhos, eles são agora as únicas pessoas no mundo que sabem que ele é gay.
Você gasta tanto tempo e tanto esforço tentando se manter firme.
E então, tudo desmorona de qualquer jeito.
Foi uma ironia delicada: quando paramos de querer nos matar, começamos a morrer. Quando estávamos sentindo força, ela foi tirada de nós.
Isso não deve acontecer com vocês.
Adultos podem falar o quanto quiserem sobre os jovens se sentirem invencíveis. É claro que alguns de nós tinham essa ousadia. Mas havia também uma voz interior nos dizendo que estávamos condenados. E estávamos condenados. E não estávamos.
Vocês nunca devem se sentir condenados.
As pessoas gostam de dizer que ser gay não é como a cor da pele, não é uma coisa física. Elas dizem que sempre temos a opção de esconder.
Mas, se isso for verdade, como é que elas sempre nos descobrem.
O ódio de Gustavo por todo mundo (os pais, as pessoas da cidade, os homens com quem ele conversa na internet) só é menor do que o ódio que sente de si mesmo. Não há nada que acrescente profundidade ao desespero como a sensação de merecer. Gustavo dirige pela cidade, sem saber o que fazer, sem saber para onde ir. Ele nem repara que a gasolina está acabando. Quando a luz de aviso se acende, ele quase se sente grato, porque agora pelo menos há uma coisa a ser feita.
Ele nem sempre foi assim. Ninguém nunca é sempre assim. Houve uma época em que era feliz, uma época em que o mundo o envolvia. Pegar minhocas e dar nomes a elas. Soprar as velas em um bolo que a mãe fez, com vinte amigos do quinto ano em volta. Um home run em um jogo importante da liga infantil que o deixou se sentindo campeão durante semanas. Um desejo de desenhar, pintar. Jogar bolas na cesta na hora do almoço com os amigos.
Mas o ensino médio confunde as coisas. Ele não queria mais fazer esportes. Os amigos se mudaram, se não de cidade, ao menos da mesa que ele na hora do almoço. O tédio começou a invadir o exterior da vida dele, e o barulho começou a crescer lá dentro. Ele passava mais e mais tempo no computador. Não era exatamente uma escolha; era apenas a única coisa que estava sempre presente.
Agora, o laptop está morto no banco de trás. Isso não o incomoda de verdade.
Em outra cidade do mesmo estado, Gustavo percebe que um tanque cheio de gasolina só vai resolver um de seus problemas, e um dos menores.
Ele para no estacionamento de um Walmart. Pega o celular e olha a lista de contatos. É o que todos parecem ser para ele, contatos. Pessoas com quem ele tem contato. Contato na aula. Contato no corredor ou no almoço. Não amigos. Não de verdade. Não se ser amigo de alguém quer dizer não ser falso. Ele é falso com todos eles. Será que alguns deixariam que ele fosse para suas casas se ele pedisse? Claro. Será que alguns escutariam o que aconteceu, se preocupariam por ele? Ou só ficariam curiosos para o que aconteceria depois? Provavelmente. Mas quando ele tenta desenvolver a ideia com qualquer um deles, não dá certo. Não ajuda. Só acrescenta observadores ao que é essencialmente um peso seu e só seu.
Portanto, ele fecha a lista de contatos. Abre um aplicativo. Decide conversar com alguns estranhos.
Há dez mensagens em seu celular. Ele as ignora.
Gustavo imaginou. Imaginou que quando seus pais descobrissem sobre ele, ficariam chocados. Mas não imaginou que dariam uma surra nele. Não imaginava que tentariam quebrar suas costelas. Ele não sabia disso. Mas tinham outras formas de quebrá-lo: com silêncio, com decepção, com reprovação. Devia ter imaginado que seu pai jamais aceitaria quem ele é. Nunca. E sua mãe acompanharia seu pai nisso. Eles tinham suas crenças, e suas crenças eram mais fortes do que qualquer crença que tinham nele. Talvez fosse desse poço que sua tristeza estivesse sendo tirada.
Enquanto anda pelos corredores do Walmart, Gustavo não pensa em beijar. Ele está navegando pelo aplicativo e conversando com estanhos, e beijar não está na mente de nenhum deles. Ele entrou na loja porque estava ficando cansado do interior do carro, estava se sentindo idiota sentado no estacionamento com as mães e idosos desfilando na sua frente com carrinhos de compras. Agora, ele anda pela loja enquanto sua mente se fragmenta em telas e janelas, torsos e seduções, informações e pedidos. A maior parte dos caras são mais velhos do que ele, alguns muito mais. Ele ignora os muito mais velhos, mas isso ainda deixa muitas opções.
- Oi, Gustavo.
Ele nem reconhece o próprio nome no começo. Tem um cara dizendo para ele todas as coisas que quer que ele faça com a boca, e tudo que Gustavo precisa fazer é digitar “Sim” e “Uau” e “Ah, cara” para que o homem continue.
- Gustavo? Está me ouvindo?
É a segunda vez que a pessoa fala, e ele ergue o olhar e vê uma garota chamada Leticia, da escola, olhando para ele de um jeito estranho. Merda, pensou ele, e enfia o celular no bolso.
Leticia ri.
- Você estava superconcentrado. Não quero interromper.
Gustavo se pergunta o que ela viu. Era só uma tela de bate-papo. Sem fotos. Ela não está perto o bastante para ter lido, certo?
- Não era nada – murmura ele.
- Ah, sei tudo sobre sua vida secreta, Gustavo.
Gustavo sente que vai deixar alguma coisa cair, e nem está segurando nada. Leticia estuda com ele em algumas matérias. Às vezes, compartilham a mesa de almoço. Ele nunca a vê fora da escola. Como ela poderia saber de alguma coisa?
- Você é o policial disfarçado do Walmart, não é? Em busca de adolescentes delinquentes como eu. Meu delineador me torna uma grande suspeita de ser praticante de furtos. Sei o tipo de perfil que se tem aqui.
Gustavo não sabe o que dizer.
- Interpreto seu silêncio como concordância – Leticia levanta as mãos – Verifique meus bolsos se precisar.
Por que ela simplesmente não vai embora? O telefone de Gustavo está vibrando loucamente no bolso, e ele imagina que ela consegue ouvir cada vez que isso acontece.
Ela abaixa as mãos. Já captou a mensagem de que Gustavo não entrou na brincadeira.
- Mas falando sério – diz ela – O que você veio fazer aqui?
Ele quer muito que ela vá embora. Por isso dá as respostas mais curtas possíveis.
- Compras.
- De quê?
- Gasolina.
- Gasolina?
Ele se sente idiota. Por que disse isso?
- Para a churrasqueira.
- Porque vai esquentar amanhã?
- Claro.
Esse é o problema de erguer uma barreira entre você e todo mundo: você vê, mas as pessoas não. Elas falam com você, mas você não consegue falar com elas. Elas se importam com coisas como o tempo e o que você foi comprar, e você não se importa com nada. É tão óbvio para você, mas é irritante o fato de que elas não entendem. Só acentua que o defeituoso é você, que quem não consegue ser normal é você, que quem precisa sofrer enquanto todo mundo vive suas ilusões é você. Nós sabemos. Já passamos por isso.
Se Leticia fosse sua amiga, ela veria que alguma coisa estava errada. Se Leticia fosse sua amiga, ela se sentiria à vontade para perguntar o que havia de errado. Mas Leticia não é sua amiga. É só uma garota que ele conhece. Um contato. Seu celular está descontrolado no bolso. Leticia olha para ele de um jeito engraçado. Por fim, ela diz:
- Tudo bem, Sr. Social. Até segunda. Boa sorte com a churrasqueira.
- Até segunda – diz Gustavo.
Ele até tenta falar como se mal pudesse esperar. Porque isso vai fazer com que ele suma mais rápido.
A barreira permanece. Leticia segue em frente, e Gustavo tira o celular do bolso. Os caras nem perceberam que ele não estava lá. Gustavo olha para as conversas, ainda tentando encontrar o cara com quem realmente quer se encontrar.
Gustavo teve que sair do Walmart depois de dar de cara com Leticia, e agora está em um Starbucks a algumas cidades de distância. Está cheio de pessoas que são do mesmo tipo que frequenta sua escola e moram em sua cidade, mas não são as mesmas pessoas. Gustavo se sente anônimo e acha ótimo.
Ele está variando entre três aplicativos de encontras e vendo muitos dos mesmos caras em cada um deles. Homens de 47 anos que querem que ele vá até a casa deles. Garotos de 18 que querem flertar sem objetivo. Homens de 29 que querem saber do que ele gosta. Ele nunca começa as conversas. Nunca os escolhe. Significa mais se eles forem até ele, porque isso quer dizer que é desejável. E, se ele é desejável, está no controle.
Achamos que ele é novo demais para saber disso. Mas ele sabe. É uma coisa que se prende em uma idade bem menor hoje em dia.
Até agora, ele já tem mais de dez mensagens no celular, todas dos pais. Do telefone fixo. Dos celulares dos dois. Ele não vai ouvi-las e não vai ligar para eles. Está bloqueando tudo. Está do outro lado da barreira. Ele não sabe onde vai dormir esta noite, mas a noite nem chegou ainda, não é? Ele tem certeza de que algumas pessoas variam isso como negação, mas não é. Ele não liga. Para poder ser negação, você tem que se importar ao menos um pouco.
Tudo o que ele sente é o vazio entediante do mundo sem graça. E ninguém o entendia mais do que ele mesmo. Ele olha de novo para os homens nos aplicativos, e desta vez surgiu um novo. De 23 anos. Bonito. O apelido dele é Antimatéria. Seus dados são os dados certos. Sua descrição diz “Tentando encontrar a força certa em meio a todo o caos”.
Gustavo espera cinco minutos. Ele quer que Antimatéria faça contato primeiro. Mas está impaciente. Depois de cinco minutos ele pensa: Tudo bem.
E dá o primeiro passo.
Alguns de nossos pais sempre estavam sempre do nosso lado. Alguns de nossos pais preferiram nos banir em vez de verem como realmente éramos. E alguns de nossos pais, quando descobriram que estávamos doentes, pararam de ser dragões e passaram a ser matadores de dragões. Às vezes, é preciso isso, a batalha final. Mas deveria ser preciso bem, bem menos do que isso.
É difícil parar de ver seu filho como seu filho e começar a vê-lo como ser humano.
É difícil parar de ver seus pais como seus pais e começar a vê-los como seres humanos.
É uma transição bilateral, e pouquíssimas pessoas conseguem fazê-la com tranquilidade.
Enquanto isso, Gustavo está conversando com Antimatéria há quase uma hora. As informações que Antimatéria tem são que Gustavo tem 19 anos e estuda na faculdade do condado. Vai se formar em finanças e tem dois colegas de quarto, sendo que um bebe demais. Antimatéria não duvida disso e diz que acabou de se mudar para um apartamento só dele e está trabalhando como gerente de um café. Também é pintor, mas não ganha muito dinheiro com isso. Gustavo já quis ser pintor e conta isso. Antimatéria pergunta o que aconteceu, e Gustavo diz que perdeu o interesse. É a história da minha vida, Gustavo conta para ele. Antimatéria responde: A história não acabou ainda.
Gustavo está um pouco interessado e um pouco entediado. Para dar um pouco de ânimo, ele manda uma foto sem camisa, e Antimatéria responde com outra. Ele tem um corpo lindo. Gustavo pergunta se quer se encontrar. Antimatéria diz que sim e propõe depois do jantar. Gustavo tenta imaginar quais são os planos de Antimatéria para o jantar, mas não pergunta. Só diz que tudo bem. Ele sugere o Starbucks onde está. Antimatéria diz que pode ser, desde que eles não precisem tomar o café de lá. Gustavo, que já tomou três copos, diz que por ele tudo bem.
Agora que o encontro está marcado, Antimatéria diz que precisa ir fazer coisas da vida real.
“Mas, antes de eu ir... qual é o seu nome?”
Drake, responde Gustavo.
“Oi, Drake. Sou Julian.”
Gustavo não consegue evitar, gostava mais de Antimatéria.
Mas não cancela o encontro. Seria burrice cancelar por uma coisa tão idiota quando um nome.
Gustavo volta para o Starbucks alguns minutos antes das 19h30, para o caso de Antimatéria, Julian, ter chegado cedo. No intervalo, ele foi comer no Subway. E agora, está finalmente lendo as mensagens. Um grande erro.
“É melhor você voltar pra casa agora mesmo. Vou arrastar você de volta se precisar...”.
Gustavo aperta o botão de apagar. Em seguida aperta-o mais treze vezes.
Temos vontade de sacudí-lo. Temos vontade de dizer para ele o que aprendemos com a experiência: apesar de você precisar ouvir a primeira mensagem, é a última que mais importa. Os nervos podem se acalmar. A raiva pode desaparecer. O bom senso pode retornar.
Não estamos dizendo que ele deveria voltar. Sabemos que é uma escolha difícil. Mas achamos que ele precisa ouvir a mensagem mais recente antes de se decidir.
Todas as mensagens são do pai ou da mãe. Mais ninguém ligou. Chegou ao ponto de Gustavo nem reparar nisso.
Julian chega quatro minutos atrasado. Ele se parece com a foto no aplicativo, e isso é um alívio. Gustavo sabe que a foto e a pessoa nem sempre correspondem. Como ele nunca se encontrou com alguém que tenha conhecido online, não teve nenhum tipo de experiência com isso. Ele sabe que se parece com sua foto. Só as palavras são mentiras.
- Oi, você – diz Julian. Sua voz é como fogo novo.
Gustavo não consegue perceber se ele está nervoso. Nós percebemos que está.
- Oi – responde Gustavo com casualidade. Como se ele fizesse isso o tempo todo.
Julian continua de pé.
- Quer ir pra outro lugar? Algum lugar menos Starbucks?
- Tipo onde? – pergunta Gustavo. A pergunta sai como um desafio.
- Não sei. Me desculpe, eu devia ter pensado nisso. Uma bebida, talvez? Ah, espere. Isso não vai ser possível.
- Por quê?
- Hã... sua idade.
- Eu posso ter 19 anos, mas ainda topo uma bebida.
- Você tem identidade?
- Não. Mas não precisamos ir a um bar.
- Pra onde, então? – começa Julian. Então, entende. – Não sei se deveríamos ir pra minha casa. Não... ainda.
- Por que não ficamos um pouco aqui? Você Não precisa comprar nada. Vou comprar um latte e podemos conversar. Pode ser?
E é assim que Gustavo assume o controle. E fica excitado com isso.
E, por enquanto, basta para compensar a decepção dele. Gustavo conclui que o cara não é um sonho, mas também não é um pesadelo. É só mais do mesmo, talvez melhor do que Gustavo sente merecer. Mas pelo menos há a possibilidade de a noite ser um pouco diferente do que costuma ser.
A noite segue.
Agora são onze horas da noite.
- Não repare na bagunça – diz Julian ao girar a chave na fechadura.
Gustavo promete que não vai reparar. Ele aposta que seu quarto é mais bagunçado.
E, como esperado, quando ele entra no apartamento, não sabe de que Julian está falando. Tudo parece estar em ordem. Não é um apartamento grande, mas não tem cuecas para todo lado, nem canos vazando pelo teto. Há telas em vários estágios por toda a sala.
Julian vê Gustavo olhando e sente necessidade de explicar.
- É o jeito como eu trabalho: passo uma hora numa coisa, depois mudo para outra, depois volto. Costumo trabalhar em pelo menos vinte quadros ao mesmo tempo. É muito déficit de atenção, eu sei. Já tentei fazer diferente, mas os quadros se cansam.
Gustavo indica o quadro no cavalete.
- Aquela é sua mãe?
Julian fica vermelho.
- Não. Na verdade, é Joni Mitchell. Escuto muitas músicas dela enquanto pinto, aí pensei em retribuir o favor. Mas não se se ela apreciaria o gesto. Você sabia que ela também é pintora?
Gustavo não faz a menor ideia do que Julian está dizendo, e, quando Julian percebe isso, fica ainda mais vermelho.
- Estou sendo um péssimo anfitrião – diz ele – Nem ofereci uma bebida ainda, Drake. O que você quer?
Gustavo quase tropeça nesse Drake, pois tinha esquecido que esse era seu nome agora. Mas se recupera rapidamente e pede um uísque com Coca-Cola. Ele nunca bebeu com outra pessoa, só em companhia do armário de bebidas do pai, quando os pais estavam viajando. Uísque com Coca é a primeira coisa que surge em sua mente.
- Talvez tenha que ser uísque com Coca Diet – diz Julian – Vou olhar. – Ele vai até a cozinha e grita: - É, Coca diet.
- Tudo bem! – grita Gustavo de volta.
Gustavo consegue ouvir a máquina de gelo trabalhando, depois o estalo de cubos caindo em copos e o som da Coca diet quando a tampa é girada. Ele olha algum dos quadros e gosta deles mais do que achava que gostaria. Julian não é ruim. E tem alguma coisa de que ele gosta na forma como todos os quadros são interminados. Eles parecem mais reais assim. Pessoas entre rabiscos e o fim da pintura. Gustavo não faz a menos ideia de quem são. Mas não espera saber, então não tem problema. Tem uma que parece sua professora de inglês do oitavo ano. Mas ele tem certeza de que não deve ser ele e mal se lembra dela, de qualquer modo.
Julian chega com dois copos da mesma bebida. Gustavo gosta do gosto: tem o equilíbrio certo, com o uísque parecendo caramelo alcóolico no centro do borbulhar químico da Coca diet. Julian pergunta qual é a pintor favorito dele, e Gustavo diz Picasso porque é o primeiro pintor em quem consegue pensar. Julian pergunta qual é seu período favorito de Picasso, e do fundo de sua mente surge período azul. Então essa é sua resposta. Pela reação satisfeita de Julian, ele consegue saber que é uma boa resposta.
Depois, numa sequência clichê de fatos, Julian fala sobre arte e bebe mais de sua bebida. Depois coloca uma música no computador do Arcade Fire e Gustavo diz que gosta deles. Gustavo Queria que alguma coisa começasse a acontecer, e logo. Portanto, chega mais perto de Julian. Bem mais perto. Inegavelmente perto. Julian está prestes a começar uma frase, mas o movimento de Gustavo a bloqueia. Gustavo pensa: É isso que queremos, não é? Ele apoia o copo na mesa, tomando o cuidado de não coloca-lo perto demais de nenhuma das telas. É hora de agir. Ele viu tantas cenas de cara fazendo isso, ficou de pau duro com eles fazendo isso, se masturbou com eles fazendo isso. Agora, chegou a hora. Julian tem um corpo lindo, um rosto legal. Gustavo quer ver o que vai acontecer, quer ver se isso muda alguma coisa. Julian está colocando a bebida na mesa, passando a mão pelo braço de Gustavo. Gustavo sabe que está com ele na palma da mão, que está com a situação na palma da mão. Ele estica a palma e a coloca na lateral do pescoço de Julian. Inclina-se. E ai está, eles estão pressionando as bocas, os corpos. Gustavo quer tanto, quer alguma coisa, e não quer parar de respirar, quer continuar e continuar. É Julian quem se afasta por um segundo, que pergunta se está tudo bem, e eles voltam a se abraçar. É como ele pensou que seria, porque Julian é mais delicado que ele imaginou que um estranho poderia ser, e quando Gustavo tenta ir mais rápido, Julian vai mais devagar. É uma discordância sutil, e eles agem de acordo com o jogo que isso é. Gustavo quer empurrá-lo no sofá, quer que ele fique deitado, mas o sofá está coberto de quadros, então ele deixa seguir mais um pouco, depois para e pergunta:
- O quarto?
E, quando Julian faz uma expressão de surpresa, ele justifica:
- Não quero esmagar seus quadros.
Julian sorri ao ouvir isso, o pega pela mão e eles vão para o pequeno quarto, ainda de pé e se beijando, então Gustavo o derruba na cama. Julian ri, e Gustavo beija a gargalhada. Ela acaba, a gargalhada, e em vez dela há mãos explorando; Gustavo, sem muita noção, quebra a sequência e vai direto para a virilha, e Julian se afasta, direciona-o para a cintura, mas Gustavo não está satisfeito, não está sentindo o que quer sentir. Ele recua por alguns minutos, beija-o deitado por cima, depois rola para que eles continuem se beijando com ele deitado embaixo, as virilhas se tocando agora, ele sentindo o que está acontecendo por baixo do Jeans de Julian, depois rolando de novo para poder tirar a própria camisa e a de Julian. Agora é pele na pele, suor no suor, e está quente, muito quente, mas Gustavo ainda não está sentindo o que quer sentir, tudo ainda parece vazio parece, ainda se sente em lugar nenhum. Assim, ele beija Julian mais intensamente, desce a mão, e Julian sussurra:
- Ainda não.
Gustavo sente que não consegue esperar muito mais, está indo muito devagar e ele quer que seja rápido o bastante para que ele não sinta mais nada, não pense em mais nada, porque não é assim que o sexo deve ser? Não é para ser uma forma de esquecimento? Ele ainda não chegou lá, ainda não, e Julian está diminuindo a velocidade de novo, acalmando o momento, e Gustavo não entende por que eles ainda não estão nus, então leva a mão no cinto de Julian, mas Julian os vira de forma que fica impossível de abrir a fivela. Gustavo segue para os botões de sua própria calça jeans, mas Julian puxa sua mão, força-a para cima, para acima da cabeça, e Gustavo gosta do movimento forte, gosta da força, sente o peito de Julian contra o peito nu, ofega involuntariamente quando Julian beija seu pescoço, depois a interseção do pescoço e a escápula, uma zona erógena que ele nem sabia que tinha. Ele quer mais, mais ainda, e os vira de forma a ficarem lado a lado, desce as mãos, solta-as das de Julian, começa inocentemente nos ombros, mas as conduz para baixo, mais para baixo, e as mãos de Julian estão lá de novo, bloqueando-o. Julian diz:
- Vamos um pouco mais devagar. É só o primeiro encontro.
E Gustavo sente vontade de dizer que eles só vão ter um encontro, que então é melhor ir até o fim, é melhor verem logo o que tem debaixo das calças jeans. Se isso fosse um filme pornô, eles já estariam nus, já estariam se chupando. Mas é claro que ele não diz isso, não diz que é o único encontro que eles terão, não quer que as coisas parem completamente. Quer negar que talvez em sua mente ele estivesse esperando encontrar um namorado esta noite, porque todo mundo sabe que não se entra em um aplicativo de sexo para encontrar namorado, e Julian acha que agora está lambendo o mamilo de um universitário de 19 anos com a vida organizada, e Gustavo está pensando: Cadê o esquecimento? Pois agora até seu corpo está começando a se afastar, e isso é ridículo porque ele é um garoto de 17 anos e uma brisa é capaz de deixa-lo excitado, e apesar de ele ainda estar de pau duro, parece que não vai dar em nada, e agora Julian percebe que eles perderam o ritmo e se afasta, se deita sobre o travesseiro, fica de lado e acaricia os ombros de Gustavo, toca nas bochechas de Gustavo, diz que ele é lindo, e Gustavo não quer ser lindo, não quer ser um quadro, quer trepar até esquecer, e sabe, sabe perfeitamente, que Julian não é o cara para esse tipo de coisa. Na verdade, o único cara para isso seria alguém que não desse a mínima para ele, e isso só seria pior. Então, esse é um caminho sem saída. É um alívio negado. Julian pergunta:
- Você está bem?
E Gustavo diz que está ótimo, porque o que é mais uma mentira vazia? Julian o beija de novo, e eles ficam existindo assim, meio entrelaçados, com Julian tocando seu cabelo, seu peito. Respirando delicadamente, tentando encaixá-los em alguma coisa mais suave do que a vida normal. Gustavo sabe que deveria se sentir lindo, ou ao menos relaxado. Mas, deitado ali, ele sente como se fosse feito de pedra. Ou não, nem mesmo pedra. Ele se sente de carne. Não de pele, não de batimentos. Só carne. Julian o está tratando como uma pessoa especial, mas ele não sabe de nada, porque Gustavo é um merda, e Julian está ali deitado admirando-o.
Ele fecha os olhos, sente o toque, mas não tem nenhuma sensação a partir dele. O tempo se expande, e ele abre os olhos e encara o relógio que parece tremer junto com sua cabeça. Gustavo deve ter dormindo um pouco. Julian também. Agora, Gustavo desperta com um susto, e Julian se mexe ao seu lado.
- Que horas são? – murmura Julian, e eles veem que horas são, e é bem mais tarde do que os dois gostariam – Acho que apagamos – diz Julian com um sorriso.
Ele se levanta, coloca a camisa e avida Gustavo antes de acender a luz.
- Acho que devemos parar por aqui – diz Julian – Tenho que trabalhar amanhã cedo, acordo às 5h30. Por isso, preciso dormir. Ou voltar a dormir, na verdade. Vou te levar de volta pro carro. Ou acompanho a pé.
A ideia de ir para o carro o deprime. Mas, mesmo assim, Gustavo não consegue acreditar no que diz em seguida. Quando as palavras saem de seus lábios, ele não consegue acreditar que está as dizendo. Ele se odeia profundamente por dizê-las. Elas o fazem sentir como se tivesse 9 anos.
- Será que posso passar a noite aqui? – pergunta.
Julian não está esperando isso. Ele olha para a camisa de Gustavo, emaranhada no chão.
- Não dessa vez, tá? – diz ele – Sei que parece bobagem, mas é um passo grande pra mim. Além disso, tenho que acordar cedo demais. Em uma outra ocasião.
As palavras que querem sair pela boca de Gustavo em seguida são: Posso dormir no sofá. Mas desta vez ele consegue segurá-las. Se ele mentisse melhor, poderia inventar uma história para justificar o pedido (uma festa no dormitório, a presença da namorada do colega de quarto, a sensação de que o uísque com Coca bateu forte demais para dirigir). Mas as mentiras estão inacessíveis para ele quanto a verdade para Julian.
Gustavo pega a camisa no chão e veste, depois guarda as moedas que caíram de seu bolso quando ele e Julian estavam rolando pela cama. Ele diz para Julian que não precisa leva-lo até o carro no carro dele nem a pé. Diz que a caminhada seria boa e que não precisa acordar tão cedo quanto ele. Julian ainda não calçou os sapatos, e, por causa disso, e também porque Gustavo não parece querer companhia, ele desiste. Juntos, eles saem do quarto e vão até a porta da frente. Julian dá outro beijo nele, mas Gustavo já quase não sente nada. Antes de Julian abrir a porta, ele pede o número de telefone de Gustavo. Gustavo dá um número falso.
- Espero te ver de novo – diz Julian na despedida.
- É, obrigado – responde Gustavo, e sai pela porta.
Por um momento, quando ele sai, a sensação do ar é boa. Mas só porque ele não está pensando em mais nada.
Mas logo ele começa a pensar em outras coisas, e a sensação não é boa. O barulho foi incomodá-lo de novo. O barulho plano e morto.
Vemos Julian levar os dois copos para a cozinha, com o gelo agora derretido. Vemos quando ele os coloca na pia e fica ali, com as duas mãos apoiadas no balcão, perguntando-se o que acabou de acontecer.
As duas da madrugada, Gustavo acorda no banco de trás do carro. Seu corpo está dolorido por tentar se acomodar no espaço diminuto. O cinto de segurança estava apertando suas costas. Ele olha para o relógio e só sente decepção ao ver as horas, pois quer que sejam cinco ou seus ou a hora do esquecimento. Ele nunca dormiu no carro e não sabe por quanto tempo vai aguentar. Se essa é sua vida agora, se isso é o que sua vida se tornou, é ainda mais patética do que era antes. Ele devia ter levado algumas roupas. Devia ter levado comida. Nem há vozes em sua mente dizendo isso; seria bem mais fácil se houvesse, porque aí poderia ser uma conversa. Mas essas coisas que ele sabe, e nenhuma voz precisa se dar o trabalho de dizê-las. Ele poderia tentar se distrair com o celular, mas a bateria está baixa e o carro precisa estar ligado para o carregador funcionar. E ele está cansado do celular. Cansado dos homens e dos garotos. Cansado de todo mundo querendo tanto ficar ficar excitado a ponto de se tornarem mentes obcecadas vivendo de um minuto obcecado até o seguinte. E para onde isso leva? Homens e garotos em todo o Brasil se masturbando, e nenhum deles se importam com Gustavo. É verdade que se eles lessem sobre Gustavo no jornal, ficariam tristes. Mas Gustavo acha que eles não perceberiam que era ele, o garoto com quem estavam conversando online na noite anterior.
Gustavo não acredita que o dia seguinte vá ser melhor. E nenhum outro dia. Não de verdade. Temos vontade de dizer que ele está errado de mil maneiras diferentes. Mas quem somos nós? Mesmo que pudéssemos falar, mesmo se pudéssemos bater naquela janela e fazer com que ele a abrisse, ele jamais acreditaria no que temos a dizer, não em comparação com o que acredita sobre si mesmo e sobre o mundo.
Sua mente está pegando fogo agora, e vai demorar horas até se acalmar o bastante e alcançar a temperatura certa para o sono. Ele está com raiva do pai, da mãe, mas principalmente passou a achar que tudo isso era inevitável, que ele nasceu para ser um garoto que precisa dormir no carro, que não havia como ele terminar o ensino médio sem ser “descoberto”. Ele sente que foi azedado por seus próprios desejos, dilapidado pelos próprios impulsos. Ele despreza a si mesmo, e essa é a chama que queima sua mente.
Ele está cansado demais para fazer qualquer coisa sobre isso. Cansado demais para ligar o carro e carregar o celular. Cansado demais para pensar em um lugar melhor para estar. Cansado demais para fugir para algum lugar. Cansado demais para acabar com tudo. Assim, fica no banco de trás, contorcendo-se, mas sem encontrar conforto. Incapaz de dormir. Incapaz de dormir. Incapaz de ir embora.
Nós acordávamos no meio da noite. Às vezes, havia tubos enfiados em nossas gargantas. Às vezes, estávamos ligados a máquinas que pareciam mais vivas do que nós. Às vezes a escuridão estava entremeada de luz. Às vezes, havíamos sonhado que estávamos em cama e que nossas mães estavam no quarto ao lado. Não conhecíamos o quarto no qual acordávamos, ou conhecíamos bem demais. A última parada. O destino final. E ali estávamos nós, presos nessas horas infinitas e imperdoáveis. Incapazes de dormir. Incapazes de viver. Incapazes de ir embora.
Gustavo está dirigindo, com o corpo dolorido da noite anterior, mas o rádio está desligado. Ele foi acordado por uma batida forte na janela, alguém dizendo que ele precisava sair do estacionamento.
A mente de Gustavo está despertando lentamente para uma coisa. As substâncias químicas estão se reunindo, algumas em lugares errados. Ele deveria estar pensando em roupas, em banho, em ir para casa. Deveria estar percebendo que seus pais deve, estar na igreja esta manhã, dando a ele oportunidade de entrar e pegar algumas coisas. Deveria estar pensando em um próximo passo. Deveria se importar.
Mas Gustavo se sente distante demais para se importar. É como se ele estivesse sentado em um cinema vazio, olhando para uma tela vazia. Seus pais não vão mudar. O mundo não vai mudar. Ele não vai mudar. Então, por que tentar? Ele está cansado demais para lutar contra tudo, cansado demais para entrar em sua própria casa, cansado demais para ligar para algum número de ajuda ou pedir a algum contato para fingir ser seu amigo por uma hora ou duas.
Nós sabemos: uma maneira quase certa de morrer é acreditar que você já está morto. Alguns de nós nunca deixamos de lutar, nunca desistiram. Mas outros, sim. Outros sentiram que a dor tinha ficado grande demais e que não era motivo o suficiente para ficar. Assim, pulamos fora. Desistimos. Mas nossos motivos não são nada que Gustavo conheça. Se ele pudesse sair dessa vida por um momento, pudesse ver da maneira que vemos, saberia que apesar de sentir que está praticamente encerrada, ainda há mil maneiras pelas quais pode ir em frente.
Seus pais ligam de novo, antes de irem para a igreja.
Ele desliga o celular. Mas não consegue joga-lo fora.
Como isso pôde acontecer?, alguns de nossos pais perguntaram perto do final. Sabíamos o que eles estavam realmente perguntando, e alguns de nós tivemos a delicadeza de dizer: Não foi nada que você tenha feito.
Gustavo está dirigindo por aí para recarregar a bateria do celular. Ele quer voltar para a caça, ver se consegue encontrar alguém melhor do que o cara da noite anterior. Uma última chance. Uma última vez.
Ele volta para o Starbucks e se senta em um canto, para que ninguém consiga ver a tela. Passa pouco de meio-dia em um domingo, mas os sites de sexo estão cheios de gente, cheios de propostas. Ele tem dez mensagens da noite anterior, de pessoas que ele ignorou enquanto estava conversando com Antimatéria.
Tudo é tão sem graça. Ele sente como se estivesse passando a vida olhando para esses rostos, apesar de só ter esse aplicativo há dois meses.
Caçaboy é quem o tira do sério. Ele já bloqueou esse cara pelo menos dez vezes. Mas o cara simplesmente cria um perfil novo e começa a mandar mensagens de novo. “Você é tão lindo”, “Você é tão gostoso”, “Acho que nos divertiríamos muito”. Ele parece trabalhar em um banco. Está com uma foto sem camisa apesar de ser velho demais para ter fotos sem camisa.
Antes, Gustavo só apertava a tecla de bloquear. Mas, dessa vez, digita uma resposta.
“Você é nojento”.
Caçaboy responde:
“E você gosta?”
Gustavo não se importa mais. Por que precisa ser educado com gente assim?
“Você não passa de um pedófilo desesperado e patético”.
Em dez segundos, Caçaboy o bloqueia, deixando uma última mensagem a Gustavo:
“Cai fora, criança!”
Gustavo gosta da sensação, por isso, continua.
Ele diz para os sujeitos que querem “só masculinos” que eles são tão ruins quanto os homofóbicos que tentam transformar “masculino” em um ideal macho de academia.
Ele diz para os sujeitos que querem “só brancos” que eles são escória racista.
Ele diz para os sujeitos de 60 anos que procuram “menores de 18 anos” que eles são pedófilos.
Ele diz para caras mais jovens com fotos nuas que eles deveriam parar de se prostituir.
“Você é patético”, escreve ele.
“Você é um desesperado”.
“Você tem medo de mostrar o rosto? É por isso que mostra o pau?”.
“Seu namorado sabe que você faz isso?”.
“Acho que tem alguma coisa errada com a minha tela. Não consigo identificar se é a sua bunda ou a sua cara”.
“Você está procurando diversão? Acha mesmo que vai encontrar aqui?”.
Todos começaram a bloqueá-lo. De repente, eles desapareceram do celular, desaparecem do celular, desaparecem da vida dele. Antimatéria não está online no momento, mas Gustavo sente que, se estivesse, acharia rapidamente um jeito de ser bloqueado por ele também.
Tem um cara de 34 anos que diz que “procura um relacionamento duradouro.”. Gustavo escreve: “Quanto tempo você acha que esses relacionamentos duram? Duas horas? Três? Se você quer um marido, deveria parar de procurar alguém com quem foder”.
Gustavo acha que será bloqueado em tempo recorde, mas o sujeito, cujo apelido é TZ, responde:
“Por que você está com tanta raiva?”
Gustavo responde: “Não estou com raiva. Só estou falando a verdade.”.
TZ não acredita. “Quem magoou você?, pergunta ele. “Quer ajuda?”.
Gustavo o bloqueia na mesma hora. Não tem como desfazer isso. Pronto.
Ele encontra outro Papai procurando um Filhão, outro Filhão procurando um Papai, e diz para eles que esse não é o jeito certo de encontrar uma família. Encontra o cara de uma semana antes que sugeriu um encontro no parque. Diz para ele estar lá em 15 minutos. Quando o cara diz que está indo, ele o bloqueia. Que fique sem entender.
Gustavo está se divertido, porque toda vez que ele é bloqueado, um novo rosto aparece. É como uma fonte infinita de descontentamento desesperado. (Sim, tem alguns caras que parecem perfeitamente felizes e tem senso de humor considerando a situação, mas Gustavo os ignora.) A cinco quilômetros de distância. Quinze quilômetros. Trinta.
Ele poderia continuar durante horas. Mas o aplicativo já está atrás dele. Deve ter havido reclamações. Porque de repente uma mensagem aparece dizendo que sua conta foi suspensa. Ele está congelado. Bloqueado por mau comportamento. Em um site de sexo.
Tudo bem, pensa ele. Ele apaga a conta. Apaga o aplicativo.
É fácil demais. Ele segue para outro aplicativo e começa a fazer a mesma coisa. É suspenso em questão de minutos. Apaga o perfil.
Ele vai para o Facebook. Em vez dos “amigos”, ele decide ir atrás de astros pop e políticos. Publica links de pornografia gay na página do Justin Bieber. Publica links de grupos nazistas na página de um congressista republicano que comparou estupro a tempo ruim. Na página de Taylor Swift, ele coloca um vídeo de uma ovelha sendo decapitada.
Só leva dois minutos e meio para ser perfil ser apagado. Essa parte de sua vida acabou.
Ele é expulso de todos os sites nos quais criou perfis. É bloqueado em cada um deles. Empilhados, esses bloqueios formaram um muro. Com ele de um lado. O resto do mundo do outro. Talvez seja sua barreira mais bem-sucedida.
Ele só precisa de uma hora no Starbucks para abandonar sua vida virtual. Se for honesto, vai admitir que essa é a maior parte de sua vida real também.
Um a um ele apaga os contatos, até seu celular está vazio.
O que sobrou?, ele pergunta a si mesmo.
A resposta é um satisfatório nada.
Gostamos de observar vocês porque todos nós fazemos parte de uma só história. Da nossa história. Tudo isso é uma história. Tudo ainda é novo para vocês. Já passamos por toda a experiência, apesar de testemunharmos coisas novas o tempo todo. Mas vocês. Novidade não é só um fato. Novidade pode ser uma emoção
Enquanto isso, Gustavo se recusa a entender. Recusa-se a se segurar. Recusa-se a sentir.
Nós o vemos deixando tudo de lado, mas não vamos deixa-lo de lado.
Ele está dirigindo sem perceber que está dirigindo. Ele sabe que há um destino para ele e segue na direção desse destino. Enquanto isso, está fazendo uma avaliação vazia das pessoas que o amam. Ele não tem medo de magoar ninguém porque acha que ninguém liga o bastante para ele a ponto de ficar magoado. Claro, as pessoas vão fazer o que se espera. Vão chorar quando ele for embora. Mas, por baixo da exibição de tristeza, ele sente o alívio delas. Elas não querem que ele volte, então ele não vai voltar.
Ele pensa que o amor é uma mentira que as pessoas contam umas para as outras para tornar o mundo suportável. Ele não quer mais saber dessa mentira. E ninguém vai mentir para ele assim. Ele não vale nem uma mentira.
Queremos que ele avalie o futuro. Queremos que ele considero que o amor torna, sim, o mundo mais suportável, mas que isso não o torna uma mentira. Queremos que ele veja a ocasião em que vai sentir o amor de verdade pela primeira vez. Mas o futuro é uma coisa que ele não está mais considerando.
Na mente dele, o futuro é uma teoria que já foi provada como sendo falsa.
Que palavra poderosa, futuro. De todas as abstrações que podemos articular, de todas os conceitos que temos e os outros animais não têm, como é extraordinária a capacidade de ver um tempo que nunca foi vivenciado. E como é trágico não acreditar nele. O quanto nos irrita, por termos um futuro tão limitado, ver uma pessoa deixa-lo de lado como se não tivesse importância, quando ele tem a capacidade infinita de ser importante e um número infinito de significados que podem ser encontrados ao longo dele.
Gustavo vai ao McDonald’s para comer alguma coisa e percebe que não tem mais tanto dinheiro. Isso deveria incomodá-lo, mas não incomoda. Ele quase nem repara.
O que ele faz é se sentar e comer seu quarteirão com queijo. As pessoas falam e riem e se empurram ao redor, mas ele olha para um espaço que não está ali, com pensamentos tão anônimos quantos seus arredores. Ele termina seu sanduíche em seis minutos e fica sentado por mais trinta. Desenvolvendo coisas na mente. Falando consigo mesmo, porque não tem mais com quem falar.
A morte é difícil, e encara-la é doloroso. Mas ainda mais dolorosa é a sensação de que ninguém se importa. De não tem um amigo no mundo. Alguns de nós morremos cercados de entes queridos. Alguns de nós tínhamos entes queridos que não conseguiram chegar a tempo, que estavam longe demais ou apenas tinham ido dormir um pouco. Mas também há alguns de nós que podem dizer como é não ter ninguém que você ama, não ter ninguém que ama você. É muito difícil ficar vivo só por você. É muito difícil encarar um dia após o outro sem outro rosto familiar olhando para você. Isso transforma seu coração em um músculo sem propósito.
Quanto menos ligações você tem com o mundo, mais fácil é ir embora.
Gustavo sai do McDonald’s. Volta para o mundo. Espera que a noite caia.
Em 1992, quando mais de 200 mil de nós foram infectados e mais de 10 mil morreram, a Calvin Klein lançou uma nova campanha publicitária com um rapper branco chamado Marky Mark. Se você é jovem e é homem, a maioria das concepções que tem do seu ideal de corpo aponta para aquelas propagandas. Todos os modelos da Hollister que chamam sua atenção, cada voz em sua cabeça que diz que o abdômen precisa de “definição”, cada grama do mito a Abercrombie estão diretamente ligados a Marky Mark. Quer você siga esses ideais ou os rejeite, eles são o padrão não realista que você precisa encarar. É o que está sendo vendido para você.
O sol está se pondo quando Gustavo se aproxima de uma ponte grande que cobre um rio largo, com uma cidade grande do outro lado. Quando éramos pequenos, essa cena era o que sempre víamos como os créditos de abertura da nossa nova vida. Mesmo aqueles de nós que cresceram na cidade imaginavam isso. Quer nós estivéssemos dirigindo ou no banco de trás de um táxi amarelo, a cidade se abria com suas maravilhas infinitas, cada janela brilhando como um convite, os arranha-céus apontando como setas para as alturas que poderíamos alcançar. Para a maior parte de nós, não foi fácil, mas ainda havia a emoção daqueles créditos de abertura para nos sustentar nos momentos difíceis, para segurar nossa fé em nós. Mesmo quando estávamos morrendo, nos lembraríamos da primeira chegada, ou nos lembraríamos de como imaginamos que a chegada seria, ou juntávamos as duas coisas, a lembrança e o sonho, formando uma realidade, e isso parecia muito tempo antes, mas algo que ainda valia a pena revisitar.
Quando Gustavo se aproxima da cidade, não conseguimos escapar de sentir um pouco daquela empolgação, de reconhecermos as fugas que fizemos, as linhas de chegada que atravessamos, só para encontrar tantas outras linhas de chegada depois.
Vemos o carro de Gustavo no desfile de faróis. Tantos carros. Tantos peregrinos. Mas o carro de Gustavo se liberta. Os faróis mudam de direção. Vemos quando ele sai da fila do pedágio e segue para a estrada. Bem debaixo da ponte, perto do pilar que sobre do chão, ele para. Desliga a ignição. Sai do carro.
Ele está estacionando ilegalmente e não se importa com a placa ali que diz PROIBIDO ESTACIONAR EM QUALQUER HORÁRIO. Ele fecha a porta do carro, mas não tranca. E, sem olhar para trás, segue para a ponte. Nós espiamos de dentro do carro e vemos a carteira dele no banco do passageiro. O carregador do celular também. Alguns recibos e dinheiro trocado. Ele deixou tudo para trás, menos o celular, que levou consigo.
Nossa primeira reação é: Não deixe sua carteira em um carro destrancado!
Mas então recuamos. Temos que recuar. Temos que parar de pensar na cidade, de lembrar da cidade. Temos que nos concentrar. Até esse momento, dava pra acreditar que ele estava indo em outra direção. Mas agora, só há uma direção.
Nós gritamos para ele, gritamos atrás dele. Apesar de não termos mais vozes, gritamos com todo nosso fôlego. Nós nos unimos em um coro desajeitado, e com agonia ouvimos o nada que sai dos seus lábios. Tentando bloquear a passagem dele, mas ele passa diretamente através de nós. Tentamos bater no carro dele, chamar atenção, mas não podemos fazer nada.
Carros passam. Para eles, não passa de outro adolescente. Que foi caminhar. Atravessar a ponte. Eles o veem jogar alguma coisa no rio. Não percebem que é o celular.
Tentamos pegá-lo. Não conseguimos.
Ele sente a amurada sobre as mãos. Não. A amurada está sob as mãos dele, mas ele não sente de verdade. Ele anda na direção do meio da ponte. Vai demorar uns dois minutos para chegar lá. Talvez três. Ele não está com pressa. Vê a água escura ondulando bem abaixo.
Ele não consegue ver a mãe chorando no quarto. Independentemente do que seu pai diga, ela não solta o celular.
Nós gritamos com ele. Imploramos. Suplicamos. Berramos. Explicamos. Nossas vidas foram curtas, e jamais desejaríamos que fossem mais curtas. Às vezes, a perspectiva chega tarde demais. Você não pode confiar em si mesmo. Você acha que pode, mas não pode. Não por ser egoísta. Você não pode viver por causa de outra pessoa. Por mais que queira, você não pode ficar vivo só porque outras pessoas querem você vivo. Não pode ficar vivo por seus pais. Não pode ficar vivo por seus amigos. E você não tem a responsabilidade de ficar vivo por causa dessas pessoas. Não tem responsabilidade de viver com ninguém além de você mesmo.
Mas eu estou morto, ele diria para nós. Eu já estou morto.
Não, nós argumentaríamos, você não está. Sabemos como é estar vivo no presente, mas morto no futuro. Mas você é o oposto. Seu eu futuro ainda está vivo. Você tem uma responsabilidade com seu eu futuro, que é uma pessoa que você talvez nem conheça, talvez ainda não compreenda. Porque, até você morrer, esse eu futuro tem tanta vida quanto você.
Conseguimos ver esse eu futuro. Mesmo que você não consiga. Conseguimos vê-lo. Ele é feito não só da sua alma presente, mas de todas as nossas almas, de todas as nossas possibilidades, de todas as nossas mortes. Ele é o oposto da nossa negação.
Você não é imprestável, gritamos para Gustavo. Sua vida não é descartável.
Você acha que não faz sentido.
Você acha que nunca vai encontrar um lugar.
Você acha que sua dor é a única emoção que vai sentir.
Você acha que mais nada vai chegar perto de ser tão forte quanto essa dor.
Você tem certeza disso.
Nesse minuto, agorinha, o minuto mais importante da sua vida, você tem certeza de que tem que morrer.
Você não vê opção.
Você precisa acordar, nós gritamos.
Escute-nos. Exigimos inutilmente que você nos escute. Nós cagamos sangue e tivemos nossa pele lacerada e rasgada por lesões. Cresce fungo em nossas gargantas, embaixo das unhas. Perdemos a capacidade de ver, de falar, de nos alimentar sozinhos. Nós tossimos pedaços de nós mesmo e sentimos nosso sangue virar magma. Perdemos o uso dos músculos e nossos corpos foram reduzidos a uma coleção de ossos envoltos por pele. Ficamos irreconhecíveis, diminuídos e destruídos. Nossos amores tiveram que nos ver morrer. Nossos amigos tiveram que ver o enfermeiro mudar nossos cateteres, tiveram que tentar afastar a imagem de quando nos colocaram no caixão, debaixo da terra. Nunca mais vamos beijar nossas mães. Nunca mais vamos ver nossos pais. Nunca mais vamos sentir ar em nossos pulmões. Nunca mais vamos ouvir o som das nossas vozes. Nunca mais vamos sentir a chuva, nem areia, nem sol, nem participar de uma conversa. Tudo foi tirado de nós, e sentimos falta. Sentimos falta de tudo. Mesmo se você não consegue sentir agora, está tudo aí, para você.
Gustavo está se aproximando do centro da ponte. Carros continuam a passar por ele; quando um caminhão passa, ele sente a ponte tremer, sente o ar ser deslocado. Isso ele sente. Mesmo tendo se fechado em sua decisão, ele ainda está no mundo.
O último minuto.
Os últimos trinta segundos.
Nossos finais nunca foram tão preciosos.
Temos vontade de fechar os olhos. Por que não podemos fechar os olhos? Não fizemos nada além de sonhar, amar e transar; por que fomos banidos pra cá, por que o mundo ainda não solucionou isso? Por que temos que ver Gustavo subir na amurada? Por que temos que ver um garoto de 12 anos colocar uma arma na cabeça e puxar o gatilho? Por que temos que ver um garoto de 14 anos se enfocar na garagem e ser encontrado pela avó duas horas depois? Por que temos que ver um garoto de 19 anos estuprado às margens de uma estrada vazia, deixado para morrer? Por que temos que ver um garoto de 13 anos encher a barriga de comprimidos e colocar um saco plástico na cabeça? Por que temos que vê-lo vomitar e se engasgar?
Por que precisamos ficar morrendo e morrendo de novo?
Gustavo se joga no ar.
Aqui estamos nós, milhares de nós, gritando não, gritando para que pare, berrando e fazendo uma rede com nossos corpos, tentando ficar entre ele e a água, apesar de sabermos (sempre sabemos) que, por mais que façamos uma rede apertada, por mais que nos esforcemos, ele vai passar reto.
Morremos e morremos de novo.
E de novo e de novo.
Gustavo pula da amurada.
Mas é empurrado pela lateral. Antes que possa entender o que está acontecendo, antes que possamos saber o que está acontecendo, ele está sendo puxado para o chão, preso, imobilizado. Ele grita, mas é ignorado. Um motorista, ao ver o que estava acontecendo, freia de repente, e o carro atrás quase bate nele. Gustavo está lutando. Gustavo está tentando se levantar, mas o homem em cima dele está dizendo para ele não se mexer, para ficar parado, para ficar ali. Gustavo sente o homem segurando-o, sente que o homem não solta. Eles se olham ao mesmo tempo. Gustavo vê o uniforme, um distintivo; um guarda de trânsito. O guarda vê Gustavo e diz:
- Nossa, você é só um garoto
Outras pessoas estão correndo até lá, estão perguntando qual é o problema, estão perguntando ao guarda se ele precisa de ajuda. Gustavo começa a tremer, com todas as emoções explodindo ao mesmo tempo. Raiva e tristeza por ter sido impedido. Humilhação. Desprezo próprio, pois não conseguiu fazer nem isso direito. E, bem lá dentro, uma voz baixinha de alívio.
O guarda ainda está segurando a carteira que encontrou no carro. Sem soltar Gustavo, ele entrega a carteira para a mulher preocupada ao lado dele e pede que ela lhe diga o nome do garoto. Ela faz isso, e então o guarda tira um pouco do peso de cima de Gustavo e o vira, para poder olhar em seus olhos.
- Pode não parecer – diz o guarda – mas, Gustavo, hoje é seu dia de sorte.
Isso não trás de volta o garoto de 12 anos que apontou uma arma para a cabeça. Não trás de volta o garoto de 14 que se enforcou. Não trás de volta o garoto de 19 estuprado às margens de uma estrada vazia, deixado para morrer. Não trás de volta o garoto de 13 anos com a barriga cheia de comprimidos. Não trás de volta nenhum de nós.
Mas trás Gustavo de volta.
Um carro para ao lado da ponte George Washington, e os pais de Gustavo saem correndo. Eles encontram o filho sentado em uma guarita de segurança, com um guarda de trânsito ao lado que o deixa ficar em silêncio. Não deveria ser o caso, mas, naquele momento, eles nunca o amaram mais.
Nós observamos vocês, mas não podemos interferir. Já fizemos nossa parte. Assim como vocês estão fazendo a sua, quer saibam ou não, quer pretendam ou não, quer queiram ou não.
Escolham suas ações com sabedoria.
Gustavo vai viver para conhecer seu futuro.
Vocês todos deveriam viver para conhecer seus eus futuros.
Nós vimos nossos amigos morrerem. Mas também vemos nossos amigos viverem. Tantos deles estão vivos, e costumamos brindar às vidas longas e plenas deles. Eles nos levam em frente.
Há o repentino. Há o definitivo.
Mas, entre eles, há a vida.
Não começamos como pó. Não terminamos como pó. Nós fazemos mais do que pó.
É tudo que pedimos a vocês: façam mais do que pó.
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