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Delação premiada de pobre é tortura

  • Leonardo de Cassio
  • 20 de ago. de 2016
  • 8 min de leitura

Sou negra, mulher, favelada, abandonada.

Carolina, com todo prazer. Sussurro essas últimas palavras antes que eu seja carregada e jogada numa vala sem poder contar a verdade do que de fato aconteceu. Mas vou contar para você, porque acredito que você vai botar a boca no mundo e fazer um escândalo.

“Policial do Bope confunde furadeira com arma e mata morador do Andaraí”.

“PMs confundem saco de pipoca com droga e matam adolescente no RJ”.

“PM confunde celular com arma e mata jovem com tiro nas costas”.

“Policial confunde ferramentas com arma e mata dois moto taxistas no RJ”.

“Policial mata adolescente por engano no Rio de Janeiro”

E agora me diga que errar é humano e que acontece. Se você disser isso, tudo bem, eu concordo, mas agora vou te voltar uma pergunta: Você sabia que todas essas pessoas que foram mortas eram, na verdade, negros moradores de periferia?

Vai continuar dizendo que foi acidente e coincidências? Tudo bem. Pare de ler isso agora mesmo, abra a porta e vá embora. Não é desse tipo de pessoa que eu preciso.

Naquele dia, nem pão havia em casa, e eu fui à escola de estômago vazio. Assim desencadeou-se a série de incidentes que acabariam por levar me levar à instituição e, de lá, a um final de vida prematuro e trágico.

O pai nos abandonara antes de eu completar dois anos e se casara com uma evangélica com quem logo fez dois filhos. Dava uma pensão miserável - duzentos reais por mês – porque nossa mãe demandara na justiça. Mesmo assim, passava meses sem pagar e não contribuía para os extras, como o conserto do tênis já gasto e o agasalho de inverno furado.

A mãe mudou para uma quitinete barata na baixada do Glicério. Quando o pai atrasava a pensão, ela me batia como se eu tivesse culpa. Quanto maior o atraso, mais forte batia. Assim começou a história dos meus espancamentos. Ficou pior quando a mãe passou a trazer homens. Sem divisória entre quarto e sala, eu via o que eles faziam e chorava. Tinha seis anos e meio e chorava. Nessas horas, queria o pai, mas o pai só me buscava raramente, quando de mim precisava para tomar conta de meus meioirmãos. Irritada pelos choros, a mãe me confinava num canto escuro da área de serviço. Eu sentia muito medo e chorava mais alto. Como silenciar-me? A mãe aprendeu que dois tabefes reduziam o choro a um lamento discreto. Houve vezes em que só a ameaça bastou. Eu tinha pavor dos bofetões da mãe.

A comunicação entre mãe e filha foi se limitando à linguagem da violência. Tapinhas leves sinalizavam trégua; era quando a mãe me deixava desenhar, copiando das histórias em quadrinhos. Em outros momentos, eram surras; quadrinhos e lápis sumiam, ocultados no topo do armário pela mãe.

Com sete anos, entrei no grupo escolar. Contudo, não aprendia o alfabeto nem os números. Chamada pela diretora, a mãe não compreendeu o que lhe foi dito e, ao regressar, esbofeteou-me como de costume. Na segunda vez em que foi chamada, deduziu que eu ia repetir o ano e me surrou de cinto. Detestava perder tempo de serviço com a escola da sua própria filha. A cada lambada, xingava: mal nascida, desgraçada, bolha, inútil, asna.

Eu tentei conter o choro, mas não consegui e senti-me humilhada. Foi quando comecei a gaguejar. Se me chamavam na classe para falar em voz alta, gaguejava. As garotas me marcaram para saco de pancada, pela gagueira e pelo físico esquálido. Eu tinha o corpo mirrado e levava os cabelos curtos porque a mãe concluíra que assim não juntava piolho e gastava menos sabão. Sua tez, morena bem clara, pendia para o esverdeado.

Muitas vezes, sentei-me no cimento do recreio ao sentir os joelhos fraquejarem em meio a uma corrida. Um dia, desmaiou na aula de ginástica. A diretora alertou por escrito que ela poderia estar anêmico e deveria ir ao médico. A mãe assustou-se; depois decidiu que era exagero, deve ter sido o sol, não precisava de médico coisa nenhuma.

No recreio, todos desembrulhavam algo para comer, menos eu. Meu uniforme era puído, minha mochila, gasta, e meu tênis, roto. Nunca foi à escola com mochila de rodinhas ou tênis de marca. Só em desenho eu impunhava-me sobre os outros. Quando podia, desenhava. Se não tinha bloco de rascunho, compunha figuras no caderno escolar, no verso de folhetos de propaganda, no que lhe caísse nas mãos. Desenhava principalmente heróis do Karatê Kid dos quadrinhos japoneses.

A mãe não cozinhava. Almoçava no emprego e à noite, ao sair da academia de ginástica, parava no bar do começo da rua para uma cerveja com as amigas e para mastigar uns amendoins. Isso lhe bastava. Fazia regime para se manter esbelta. Às vezes, nas noites em que não malhava na academia, fervia um macarrão instantâneo. Eu comia então uma rara refeição quente. De manhã, quando saía para o trabalho, a mãe me deixava biscoitos ou uma côdea de pão.

Naquele dia fatídico, em que nem pão havia em casa, cheguei à escola faminta de doer o estômago. No recreio, não tirava os olhos do lanche de Bruno, um gorducho. Bruno me afastou com um empurrão, e eu revidei. Bruno caiu no piso de cimento e, ao ver sangue em seu cotovelo arranhado, berrou. Chamaram o inspetor, e levei uma suspensão, dessa vez de três dias, acusado de provocar a briga.

À noite, a mãe soube da suspensão e surrou-me com a parte afivelada do cinto. Sangrei. Depois, espargiu sal para não arruinar. Naquela noite, embora nunca tivesse apanhado tão feio e nunca tivesse doído tanto, consegui não chorar. Mordi o lábio de baixo com os dentes de cima e não chorei. Tinha tomado uma decisão.

Depois que a mãe dormiu, enfiei na mochila minhas poucas roupas, meus dois álbuns do Karatê Kid, o lápis e o caderno. Vesti meu único agasalho, calcei meu par de tênis já gastos e abandonei em silêncio a quitinete. Não peguei o elevador, temendo ser vista por vizinhos; desci pela escada, degrau a degrau, assegurando-se de não haver ninguém no caminho.

Na porta da rua, menti ao zelador que o pai estava me esperando, saí, virei rápido para a direita e apressei o passo. As costas ardiam tanto que precisei levar a mochila com as mãos. Mas estava contente. Finalmente tomara coragem. Sentia-me uma karatê kid em busca de aventura. Caminhava depressa, sem destino. Não tinha um plano. Queria apenas fugir. Ao perceber que tomara automaticamente a direção da escola, dobrei na primeira esquina. Também da escola fugia. Chega, acabou.

Caminhava havia meia hora quando foi interceptado pela patrulha da Polícia Militar. Eram três policiais, um deles, mulher. Estranharam-me, por estar só, tarde da noite. Eu não ia dizer nada a eles, isso que apanhou, que levou suspensão de três dias, já não era mais criança. Estavam numa porta de padaria. Frente a sua teimosia em não falar, a policial foi ao fundo da padaria e voltou com um pão doce coberto de creme e uma latinha de refrigerante. Em poucos segundos, devorei o pão doce e esvaziei o refrigerante. Aquilo já era uma mensagem. Eu estava faminto. Comigo apaziguada, examinaram a mochila. Entre as folhas do caderno encontraram a carta da diretora da escola. Simples, fugiu de casa por causa da suspensão; era só levá-lo de volta.

Mas, quando falaram em mãe, gritei um "NÃO!!" que eletrizou a padaria. E agarrei-me com todas as forças na base fixa de uma banqueta rente ao balcão. Dali ninguém iria tirar-me. O grito atraiu mais pessoas. Formou-se uma pequena assembleia. Finalmente, os policiais decidiram levar-me à delegacia da mulher, por sorte, ali perto, pois àquela hora o juizado de menores estava fechado. A delegada, familiarizada com violência doméstica, mandou-me tirar a camisa. Como ela desconfiara, ali estavam as marcas do espancamento, profundas, avermelhadas, salpicadas de sangue.

Dois dias depois, no juizado de menores, para onde fui levada diretamente, sem ter regressado à casa, fui informada de que não viveria mais com a mãe. O juiz cassara a tutela materna, fato raríssimo. Para a casa do pai não podia ir porque a madrasta se recusava a receber-mo, e o pai chegara a insinuar que, depois de a garota crescer, perdera a certeza de ele ser filho seu.

Fui internado na escola-orfanato para crianças abandonadas, no Pacaembu, onde já se abrigavam 320 meninas, a maioria mulatinhas e pretinhas. Funcionava quase como prisão. Dentro, circulavam livres, mas não podiam sair. Eu era a menos escura. Logo que me viram, caíram em cima para pegar minhas coisas. Embora menor que muitos delas, resisti bravamente, derrubou várias e de uma tirou sangue. Conseguiram pegar um de seus álbuns do Karatê Kid, mas a valentia lhe garantiu a aceitação.

Naquela instituição de meninas abandonadas era preciso ser esperta sempre. Mas a nivelação pelo abandono fez bem a mim. E nunca mais me faltou o café da manhã. Era até mais bem tratado pelos serventes, que me viam como vítima de um infortúnio maior, como se para pretinhos e mulatinhos o abandono fosse natural e talvez merecido.

No primeiro exame médico diagnosticaram em mim verminose e desnutrição protéico-calórica. Recebeu vermífugo, um mês de ração extra e suplemento de vitaminas durante um ano. No final desse ano eu já parecia um menino normal. E parou de gaguejar. Contudo, minha compleição permaneceu franzina e com sequelas da desnutrição na ossatura dos ombros e dos joelhos.

De um professor encantado com seus desenhos, recebi um caderno com quarenta folhas de papel Canson. Pela primeira vez, senti o prazer de desenhar em papel de gramatura grossa. Também havia, na pequena biblioteca, livros ilustrados, os quais ele podia copiar. Poucas meninas eram visitadas pelos pais, mas apareciam muitas avós, um ou outro irmão, ou alguma tia. Nunca recebi uma visita da mãe nem do pai. Nesses momentos, sentia melancolia.

No segundo ano, já veterana, fiquei amiga de um garoto recém-chegado do juizado da Zona Norte, um pretinho de apelido Minhoca, e minhas atribulações diminuíram, ajustei-me a um estado de violência de baixa intensidade, como modo de vida normal. No último ano do internato, Minhoca começou a fumar crack e insistiu para eu acompanhá-lo. Eu disse “não". Pelas histórias em quadrinhos sabia que o crack era coisa ruim demais. Eu não era um merda, sabia desenhar, não precisava dessa porcaria de crack. Pedi pro Minhoca nunca mais falar de crack perto dele.

Saímos quase juntos do internato, e eu, que tinha dificuldade de me relacionar com estranhos, fiquei uns tempos na casa das tias do Minhoca, na Zona Norte. Entregava pizza, lavava prato, fazia bicos. O dono de um jornal da Zona Norte viu os meus desenhos na pizzaria e me chamou para trabalhar de aprendiz em sua gráfica. Criei coragem e aluguei um quarto só para mim. Já estava com dezoito anos e meio.

Minhoca entrara numa gangue de desmanche de carros em sociedade com uns soldados da PM. Eu e ele continuamos amigos e quase todo fim de semana nos encontrávamos para uma cerveja. Minhoca saía da droga, entrava de novo, saía. Não demorou muito, uma noite a PM o pegou. Sua gangue invadira o território de outra turma da PM. Vieram em dois carros da Rota, de supetão, seis peemes. Agarram Minhoca quando tomava cerveja comigo e o foram arrastando, já de revólveres nas mãos, para um matagal.

Eu gritei e tentei segurar Minhoca. Levaram-me ele junto. Enquanto dois peemes

seguravam-me, os outros quatro fuzilavam Minhoca. Foram oito tiros, cinco no peito e três na cabeça. Depois discutiram o que fazer comigo. Deixar testemunha era ruim. Matar um branco bem-vestido também não era bom. Decidiram por uma advertência pesada, para eu nem pensar em abrir a boca. Levaram-me mais para dentro do mato e me espancaram. Revezaram-se, esmurrando o peito franzino, socando a barriga na altura dos rins, batendo de cassetete nos ombros e nas canelas, dando pontapés na virilha. Só não batiam na cabeça para não matar. Mas mataram. Não sabiam das sequelas da desnutrição. Estou morrendo do jeito que vivi a maior parte de sua vida, apanhando.

Tinha dezoito anos e oito meses.


 
 
 

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